Tudo começa em Barcelona, em 1945. Daniel Sempere está completando 11 anos. Ao ver o filho triste por não conseguir mais se lembrar do rosto da mãe já morta, seu pai lhe dá um presente inesquecível: em uma madrugada fantasmagórica, leva-o a um misterioso lugar no coração do centro histórico da cidade, o Cemitério dos Livros Esquecidos. O lugar, conhecido de poucos barceloneses, é uma biblioteca secreta e labiríntica que funciona como depósito para obras abandonadas pelo mundo, à espera de que alguém as descubra. É lá que Daniel encontra um exemplar de A Sombra do Vento, do também barcelonês Julián Carax.
O livro desperta no jovem e sensível Daniel um enorme fascínio por aquele autor desconhecido e sua obra, que ele descobre ser vasta. Obcecado, Daniel começa então uma busca pelos outros livros de Carax e, para sua surpresa, descobre que alguém vem queimando sistematicamente todos os exemplares de todos os livros que o autor já escreveu. Na verdade, o exemplar que Daniel tem em mãos pode ser o último existente. E ele logo irá entender que, se não descobrir a verdade sobre Julián Carax, ele e aqueles que ama poderão ter um destino terrível.
Em sua busca de início aparentemente inocente, Daniel acaba adentrando os mistérios e segredos mais obscuros de Barcelona, e conhece uma galeria de personagens que vão ajudá-lo a resolver o mistério de Carax. Dom Gustavo Barceló, célebre livreiro barcelonês, seriamente interessado em comprar o exemplar de A Sombra do Vento que Daniel lhe mostra; sua linda sobrinha cega, Clara Barceló, que revela a Daniel os primeiros elementos do mistério que cerca Carax e sua obra e por quem o menino se apaixona perdidamente; Fermín Romero de Torres, mendigo de passado glorioso e aguçado senso de humor que se tornará o maior aliado de Daniel na busca da verdade; Nuria Monfort, mulher triste que guarda em seu apartamento escuro um grande e doloroso segredo; e Javier Fumero, o cruel policial que também parece dedicar a vida a perseguir o fantasma de Julián Carax.
À medida que vai descobrindo mais sobre a vida de Carax, Daniel entende que o mistério de sua obra está de alguma forma relacionado à história de amor entre dois jovens do início do século: o próprio Carax, filho de um modesto chapeleiro, e Penélope Aldaya, filha de uma família da alta sociedade de Barcelona. E enquanto a cidade e seus personagens vão aos poucos lhe revelando os segredos e as conseqüências dessa história de amor do passado, o próprio Daniel também descobre o verdadeiro amor nos braços de Bea, irmã mais velha de seu melhor amigo Tomás Aguilar.
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Nuria Monfort: Memória de Aparições – 1933-1955
1.
Julián Carax e eu conhecemo-nos no Outono de 1933. Nessa altura, eu trabalhava para o editor Josep Cabestany. O senhor Cabestany tinha-o descoberto em 1927 durante uma das suas viagens «de prospecção editorial» a Paris. O Julián ganhava a vida tocando piano à tarde numa casa de alterne e escrevia de noite. A dona do estabelecimento, uma tal Irene Marceau, tinha contatos com a maioria dos editores de Paris e, graças aos seus rogos, favores ou ameaças de indiscrição, Julián Carax tinha conseguido publicar vários romances em diferentes editoras com resultados comerciais desastrosos. Cabestany adquirira os direitos exclusivos para editar a obra de Carax em Espanha e na América do Sul por uma quantia irrisória que incluía a tradução dos originais em francês para castelhano por parte do autor. Contava poder vender uns três mil exemplares de cada uma, mas os dois primeiros títulos que publicou em Espanha foram um rotundo fracasso: apenas se vendeu uma centena de exemplares de cada um. Apesar dos maus resultados, de dois em dois anos recebíamos um novo manuscrito do Julián, que Cabestany aceitava sem fazer reparos, alegando que subscrevera um compromisso com o autor, que o lucro não era tudo e que era preciso promover a boa literatura.
Um dia, intrigada, perguntei-lhe por que continuava a publicar romances de Julián Carax e a perder dinheiro no empreendimento. Como única resposta, Cabestany foi até à sua estante, pegou num exemplar de um livro do Julián e convidou-me a lê-lo. Assim fiz. Duas semanas mais tarde tinha-os lido todos. Desta vez a minha pergunta foi como era possível que vendêssemos tão poucos exemplares daqueles romances.
– Não sei – disse Cabestany. – Mas continuaremos a tentar. Pareceu-me um gesto nobre e admirável que não condizia com a imagem fenícia que tinha feito do senhor Cabestany. Talvez o tivesse julgado mal.
A figura de Julián Carax cada vez me intrigava mais. Tudo o que se lhe referia estava envolvido em mistério. Pelo menos uma ou duas vezes por mês alguém telefonava a perguntar a direcção de Julián Carax. Depressa notei que era sempre a mesma pessoa, que se identificava com nomes diferentes. Eu limitava-me a dizer-lhe o que já diziam as contracapas dos livros, que Julián Carax vivia em Paris. Com o tempo, esse homem deixou de telefonar. Eu, por causa das moscas, tinha apagado a direcção de Carax dos arquivos da editora. Eu era a única que lhe escrevia e sabia-a de cor.
Meses mais tarde, por acaso, deparei com as folhas de contabilidade que a casa impressora enviava ao senhor Cabestany. Ao dar-lhes uma vista de olhos reparei que as edições dos livros de Julián Carax eram integralmente custeadas por um indivíduo alheio à empresa do qual eu nunca tinha ouvido falar: Miquel Moliner. Mais, os custos de impressão e distribuição das obras eram substancialmente inferiores à soma facturada ao senhor Moliner. Os números não mentiam: a editora estava a fazer dinheiro imprimindo livros que iam parar directamente a um armazém. Não tive coragem para questionar as indiscrições financeiras do senhor Cabestany. Receava perder o meu lugar. O que fiz foi anotar a direcção para a qual enviávamos as facturas em nome de Miquel Moliner, um palacete da rua Puertaferrisa. Guardei aquela direcção durante meses antes de me atrever a visitá-lo. Finalmente, a minha consciência levou a melhor e fui a casa dele disposta a dizer-lhe que Cabestany o estava a intrujar. Sorriu e disse-me que já sabia.
– Cada qual faz aquilo para que serve.
Perguntei-lhe se fora ele que tinha andado a ligar tantas vezes para averiguar a direcção de Carax. Disse que não e, com ar sombrio, advertiu-me de que não devia dar essa direcção a ninguém. Nunca.
Miquel Moliner era um homem enigmático. Vivia sozinho num palácio cavernoso e quase em ruínas que fazia parte da herança do pai, um industrial que enriquecera com o fabrico de armas e, dizia-se, a promoção de guerras. Longe de viver no meio do luxo, o Miquel levava uma existência quase monástica, decidido a dilapidar aquele dinheiro que considerava ensanguentado no restauro de museus, catedrais, escolas, bibliotecas, hospitais e em assegurar-se de que as obras do seu amigo da juventude, Julián Carax, fossem publicadas na sua cidade natal.
– Dinheiro sobra-me, e amigos como o Julián faltam-me – dizia como única explicação.
Mal mantinha contatos com os irmãos ou com o resto da família, aos quais se referia como estranhos. Não se casara e raramente saía do recinto do palácio, no qual ocupava apenas o andar superior. Era ali que tinha montado o seu escritório, onde trabalhava febrilmente escrevendo artigos e colunas.
– Enquanto se trabalha, não se olha a vida nos olhos. Fizemo-nos bons amigos quase sem nos apercebermos. Tínhamos ambos muito em comum, talvez demasiado. O Miquel falava-me de livros, do seu adorado doutor Freud, de música, mas principalmente do seu velho amigo Julián. Víamo-nos quase todas as semanas. O Miquel contava-me histórias dos dias do Julián no colégio de San Gabriel. Conservava uma colecção de antigas fotografias, de relatos escritos por um Julián adolescente. O Miquel adorava o Julián e através das suas palavras e lembranças aprendi a descobri-lo, a inventar uma imagem na ausência. Um ano depois de nos conhecermos, o Miquel Moliner confessou-me que se tinha apaixonado por mim. Não quis feri-lo, mas tão-pouco enganá-lo. Era impossível enganar o Miquel. Disse-lhe que o apreciava imenso, que se tinha convertido no meu melhor amigo, mas que não estava apaixonada por ele. O Miquel disse-me que já sabia. – Estás apaixonada pelo Julián, mas ainda não o sabes. Em Agosto de 1933, o Julián escreveu-me anunciando-me que tinha quase terminado o manuscrito de um novo romance intitulado O Ladrão de Catedrais. Cabestany tinha uns contratos pendentes de renovação em Setembro com a Gallimard. Havia já semanas que estava paralisado com um ataque de gota e, como prémio pela minha dedicação, decidiu que fosse eu a França em seu lugar para tratar dos novos contratos e, de caminho, visitar Julián Carax e trazer a nova obra. Escrevi ao Julián anunciando a minha visita para meados de Setembro e perguntando-lhe se me podia recomendar um hotel modesto e de preço acessível. O Julián respondeu dizendo que me podia instalar em casa dele, um modesto andar no bairro de St. Germain, e eu pouparia o dinheiro do hotel para outros gastos. No dia anterior à partida visitei o Miquel para lhe perguntar se tinha alguma mensagem para o Julián. Hesitou um longo pedaço, e depois disse que não.
A primeira vez que vi o Julián em pessoa foi na estação de Austerlitz. Não tardei a ficar só e vi um homem enfiado num sobretudo preto postado à entrada da plataforma que me observava por entre o fumo de um cigarro.
– Julián?
O estranho sorriu-me e assentiu. Carax tinha o sorriso mais bonito do mundo. Era a única coisa que ficava dele.
O Julián ocupava uma água-furtada no bairro de St. Germain. O Julián compartilhava o andar com um enorme gato branco ao qual chamava Kurtz. O resto eram livros.
Contemplámos a chuva em silêncio durante um longo espaço de tempo. Depois, quando a chuva parou, perguntei-lhe quem era P., de suas dedicatórias.
– Penélope – respondeu.
Pedi-lhe que me falasse dela, daqueles treze anos de exílio em Paris. A meia-voz, na penumbra, o Julián contou-me que Penélope era a única mulher que amara.
Uma noite de Inverno de 1941, Irene Marceau encontrou o Julián Carax a vaguear pelas ruas, incapaz de se lembrar do seu nome e a vomitar sangue. Trazia consigo apenas umas moedas e umas páginas dobradas, escritas à mão. Irene leu-as, e julgou que tinha dado com um autor famoso, perdido de bêbado, e que talvez um editor generoso a recompensasse quando ele recobrasse o conhecimento. Essa era pelo menos a sua versão, mas o Julián sabia que lhe salvara a vida por compaixão. Passara seis meses num quarto no sótão do bordel de Irene, a restabelecer-se. Os médicos advertiram Irene de que, se aquele indivíduo se voltasse a envenenar, não respondiam por ele. Tinha destruído o estômago e o fígado, e ia passar o resto dos seus dias sem se poder alimentar a não ser de leite, queijo fresco e pão mole. Quando o Julián recuperou a fala, Irene perguntou-lhe quem era.
– Ninguém – respondeu o Julián.
– Pois ninguém vive à minha custa. Que sabes tu fazer? O Julián disse que sabia tocar piano.
– Mostra.
O Julián sentou-se ao piano do salão e, perante uma intrigada assistência de quinze putazinhas adolescentes em trajes menores, interpretou um nocturno de Chopin. Todas aplaudiram menos Irene, que disse que aquilo era música de mortos e que elas estavam no negócio dos vivos. O Julián tocou para ela um ragtime e um par de peças de Offenbach.
– Isso é melhor.
O seu novo emprego granjeava-lhe um ordenado, um tecto e duas refeições quentes por dia.
Em Paris sobreviveu graças à caridade de Irene Marceau, que era a única pessoa que o entusiasmava a continuar a escrever. Ela gostava de novelas românticas e das biografias de santos e mártires, que a intrigavam enormemente. Na sua opinião, o problema do Julián era que tinha o coração envenenado e que por isso só conseguia escrever aquelas histórias de espantos e trevas. Apesar dos seus reparos, fora Irene quem conseguira que o Julián encontrasse editor para os seus primeiros romances, quem lhe tinha arranjado aquela água-furtada onde se escondia do mundo, quem o vestia e arrancava de casa para apanhar sol e ar, quem lhe comprava livros e o obrigava a acompanhá-la à missa ao domingo e depois a passear pelas Tulherias. Irene Marceau mantinha-o vivo sem lhe pedir outra coisa em troca a não ser a sua amizade e a promessa de que continuaria a escrever. Com o tempo, Irene permitiu-lhe que levasse uma ou outra das raparigas para a água-furtada, mesmo que fosse só para dormirem abraçados. Irene gracejava dizendo que elas estavam quase todas tão sozinhas como ele e a única coisa que queriam era algum carinho.
– O meu vizinho, monsieur Darcieu, tem-me pelo homem mais felizardo do universo.
Perguntei-lhe por que razão nunca tinha regressado a Barcelona para reencontrar a Penélope. Mergulhou num longo silêncio e, quando lhe procurei o rosto na escuridão, encontrei-o sulcado de lágrimas. Sem saber bem o que fazia, ajoelhei-me junto dele e abracei-o. Permanecemos assim, abraçados naquela cadeira, até que o alvorecer nos surpreendeu. Já não sei quem beijou primeiro quem, nem se isso tem importância. Sei que encontrei os seus lábios e que me deixei acariciar sem me aperceber de que também eu estava a chorar e não sabia porquê. Naquele amanhecer, e em todos os que se seguiram durante as duas semanas que passei com o Julián, amámo-nos no chão, sempre em silêncio. Depois, sentados num café ou a passear pelas ruas, eu olhava-o nos olhos e sabia sem necessidade de lhe perguntar que ele continuava a amar a Penélope. Lembro-me de que nesses dias aprendi a odiar aquela rapariga de dezessete anos (porque para mim a Penélope teve sempre dezassete anos), que nunca conhecera e com a qual começava a sonhar.
Um dia o Julián adormeceu nos meus braços, exausto. Na tarde anterior, ao passar defronte da montra de uma loja de penhores, tinha parado para me mostrar uma caneta de tinta permanente que estava exposta na vitrina havia anos e que segundo o lojista tinha pertencido a Victor Hugo. O Julián nunca tivera um cêntimo para a comprar, mas ia vê-la todos os dias. A caneta custava uma fortuna que eu não tinha, mas o lojista disse-me que me aceitaria um cheque em pesetas sobre qualquer banco espanhol com balcão em Paris. Antes de morrer, a minha mãe tinha-me prometido que amealharia durante anos para me comprar um vestido de noiva. A caneta de Victor Hugo levou o meu véu de roldão e, embora soubesse que era uma loucura, nunca gastei dinheiro de melhor vontade. Ao sair da loja com o fabuloso estojo, reparei numa mulher que me seguia. Era uma dama muito elegante, com o cabelo prateado e os olhos mais azuis que alguma vez vi. Aproximou-se de mim e apresentou-se. Era Irene Marceau, a protetora do Julián. O meu moço de cego Hervé tinha-lhe falado de mim.
Só queria conhecer-me e perguntar-me se eu era a mulher de quem o Julián tinha estado à espera todos aqueles anos. Não precisei de responder. Irene limitou-se assentir e beijou-me na face. Vi-a afastar-se pela rua abaixo e soube então que o Julián nunca seria meu, que o tinha perdido antes de começar. Regressei à água-furtada com o estojo da caneta oculto na mala. O Julián esperava-me acordado. Despiu-me sem dizer nada e fizemos amor pela última vez. Quando me perguntou por que chorava, disse-lhe que eram lágrimas de felicidade. Mais tarde, quando o Julián desceu a fim de ir buscar qualquer coisa para comer, fiz a mala e deixei o estojo com a caneta em cima da sua máquina de escrever. Meti o manuscrito do romance na mala e parti.
2.
No meu regresso a Barcelona deixei passar algum tempo antes de voltar a visitar o Miquel Moliner. Precisava tirar Julián da cabeça e percebia que, se o Miquel me perguntasse por ele, não ia saber o que dizer. Quando nos encontrámos de novo não foi preciso dizer-lhe nada. O Miquel olhou-me nos olhos e limitou-se a assentir. Confessou-me que estava a passar por dificuldades económicas. Tinha gasto quase todo o dinheiro que herdara nas suas doações filantrópicas e agora os advogados dos irmãos estavam a tratar de o desalojar do palacete alegando que uma cláusula do testamento do velho Moliner especificava que o Miquel só poderia fazer uso daquele lugar desde que o mantivesse em boas condições e pudesse demonstrar solvência para manter o imóvel. Caso contrário, o palácio de Puertaferrisa passaria à custódia dos seus outros irmãos.
Durante aqueles meses que passei afastada do Julián, a Penélope Aldaya tinha-se convertido num espectro que me devorava o sono e o pensamento. Ainda recordava a expressão de decepção no rosto de Irene Marceau ao verificar que eu não era a mulher de que o Julián estava à espera. A Penélope Aldaya, ausente e à traição, era uma inimiga demasiado poderosa para mim. Miquel voltou a insinuar o seu interesse por mim. Fitei-o e vi um homem só, sem esperanças. Sabia o que fazia quando o levei a casa e me deixei seduzir por ele. Sabia que estava a enganá-lo, e que ele o sabia também, mas não tinha mais nada no mundo. Foi assim que nos convertemos em amantes, por desespero. Eu via nos seus olhos o que teria querido ver nos do Julián. Sentia que, ao entregar-me a ele, me vingava do Julián e da Penélope e de tudo aquilo que me era negado. O Miquel, que estava doente de desejo e de solidão, sabia que o nosso amor era uma farsa, e mesmo assim não conseguia deixar-me ir.
Disse-me então que se isso era realmente o que eu queria, me contaria a verdade sobre a Penélope Aldaya.
Naquele domingo de 1919 em que o Miquel Moliner tinha ido à estação de Francia entregar o bilhete para Paris e despedir-se do seu amigo Julián, já sabia que a Penélope não compareceria ao encontro. Sabia que dois dias antes, quando don Ricardo Aldaya regressara de Madrid, a mulher lhe tinha confessado que surpreendera o Julián e a sua filha Penélope no quarto da aia Jacinta. O Jorge Aldaya tinha revelado ao Miquel o sucedido no dia anterior, fazendo-o jurar que nunca o contaria a ninguém. O Jorge explicou-lhe que, ao receber a notícia, don Ricardo explodiu de cólera e, gritando como um louco, correu ao quarto da Penélope, que ao ouvir a berraria do pai se fechara à chave e chorava de terror. Don Ricardo deitou a porta abaixo a pontapé e encontrou a Penélope de joelhos, tremendo e suplicando o seu perdão. Don Ricardo pregou-lhe então uma bofetada que a deitou ao chão. A Jacinta foi despedida nesse mesmo dia.
O médico chegou de madrugada. A senhora Aldaya conduziu-o até à alcova onde mantinham a Penélope encerrada e esperou à porta enquanto o médico a observava. Ao sair, o médico limitou-se a assentir e a receber o seu pagamento.
O Jorge ouviu don Ricardo dizer-lhe que, se comentasse com alguém o que ali tinha visto, ele se encarregaria pessoalmente de lhe arruinar a reputação e de impedir que voltasse a exercer medicina. Até o Jorge sabia o que isso significava.
O Jorge confessou estar muito preocupado com a Penélope e com o Julián. Nunca tinha visto o pai possuído por semelhante cólera. Mesmo tendo em conta a ofensa cometida pelos amantes, não compreendia o alcance daquela ira. Tem de haver alguma coisa mais, disse, alguma coisa mais. Don Ricardo dera já ordens para que o Julián fosse expulso do colégio de San Gabriel e entrara em contato com o pai do rapaz, o chapeleiro, para o meter imediatamente no Exército. O Miquel, ao ouvir aquilo, decidiu que não podia dizer a verdade a Julián. Se lhe revelasse que don Ricardo Aldaya mantinha a Penélope encerrada e que ela trazia nas entranhas o filho de ambos, o Julián nunca apanharia aquele comboio para Paris. Sabia que ficar em Barcelona seria o fim do amigo. Assim, decidiu enganá-lo e deixá-lo partir para Paris sem saber o que tinha sucedido, permitindo-lhe acreditar que a Penélope mais tarde ou mais cedo se lhe reuniria. Ao despedir-se do Julián naquele dia na estação de Francia, queria crer que nem tudo estava perdido.
Dias mais tarde, quando se soube que o Julián tinha desaparecido, abriram-se os infernos. Don Ricardo Aldaya deitava espuma pela boca. Pôs meio departamento da polícia na procura e captura do fugitivo, sem êxito. Acusou então o chapeleiro de ter sabotado o plano que tinham combinado e ameaçou-o com a ruína absoluta. O chapeleiro, que não percebia nada, acusou por sua vez a sua mulher Sophie de ter tramado a fuga daquele filho infame e ameaçou-a de a pôr na rua para sempre. A ninguém ocorreu que era o Miquel Moliner que tinha idealizado todo o assunto. A ninguém exceto ao Jorge Aldaya, que duas semanas mais tarde o foi ver. Já não ressumava o temor e a preocupação que o tinham imobilizado dias atrás. Aquele era outro Jorge Aldaya, adulto e esbulhado de inocência. Fosse o que fosse que se ocultava atrás da raiva de don Ricardo, o Jorge tinha-o descoberto. O motivo da visita era sucinto: disse-lhe que sabia que era ele que tinha ajudado o Julián a fugir. Anunciou-lhe que já não eram amigos, que nunca mais o queria voltar a ver e ameaçou matá-lo se contasse a alguém o que lhe tinha revelado duas semanas antes.
Umas semanas mais tarde, o Miquel recebeu a carta sob nome falso que o Julián enviava de Paris dando-lhe a sua direção e comunicando-lhe que estava bem e sentia a sua falta e interessando-se pela sua mãe e pela Penélope. Incluía uma carta dirigida à Penélope para que o Miquel a reexpedisse de Barcelona, a primeira de tantas que a Penélope nunca chegaria a ler. O Miquel deixou passar prudentemente uns meses. Escrevia semanalmente ao Julián referindo-lhe apenas aquilo que julgava oportuno, que era quase nada. O Julián, por sua vez, falava-lhe de Paris. O Miquel enviava-lhe dinheiro, livros e a sua amizade. Juntamente com cada carta, o Julián acompanhava as suas remessas de outra missiva para a Penélope. O Miquel mandava-as por diferentes estafetas, mesmo sabendo que era inútil. Nas suas cartas, o Julián não parava de perguntar pela Penélope. O Miquel não podia contar-lhe nada. Sabia pela Jacinta que a Penélope não saíra de casa desde que o pai a tinha fechado no quarto do terceiro andar.
Uma noite, o Jorge Aldaya saiu-lhe ao caminho no meio das sombras a dois quarteirões de sua casa. «Vens já matar-me?», perguntou o Miquel. O Jorge anunciou que lhe vinha fazer um favor a ele e ao seu amigo Julián. Entregou-lhe uma carta e sugeriu-lhe que a fizesse chegar ao Julián, onde quer que se tivesse ocultado. O envelope continha uma folha de papel escrita pelo punho da Penélope Aldaya.
Caro Julián
Escrevo-te para te anunciar o meu casamento próximo e para te pedir que não me escrevas mais, que me esqueças e que refaças a tua vida. Não te guardo rancor, mas não seria sincera se não te confessasse que nunca te amei e nunca poderei amar-te. Desejo-te o melhor, onde quer que estejas.
Penélope.
O Miquel leu-a e releu-a mil vezes. O traço era inequívoco, mas não acreditou nem por um momento que Penélope tivesse escrito aquela carta por vontade própria. Depois de muito meditar, o Miquel decidiu não enviar a carta. Não sem antes saber a sua causa. Sem uma boa razão, não seria a sua mão que enterraria aquele punhal na alma do amigo.
Dias mais tarde soube que don Ricardo Aldaya, farto de ver a Jacinta Coronado a rondar como uma sentinela as portas de sua casa mendigando notícias da Penélope, tinha recorrido às suas muitas influências e feito encerrar a aia da filha no manicómio de Horta. Quando o Miquel Moliner quis visitá-la, foi-lhe negada autorização. A Jacinta Coronado ia passar os seus três primeiros meses numa cela incomunicável. Depois de três meses no silêncio e na escuridão, explicou-lhe um dos médicos, um indivíduo muito jovem e sorridente, a docilidade da paciente estava garantida. Seguindo um pressentimento, o Miquel decidiu visitar a pensão em que a Jacinta tinha estado a viver durante os meses subsequentes ao seu despedimento. Ao identificar-se, a patroa recordou que a Jacinta deixara uma mensagem em seu nome e três semanas por pagar. Liquidou a dívida e apoderou-se da mensagem em que a aia dizia que tinha conhecimento de que uma das criadas da casa, Laura, fora despedida ao saber-se que tinha enviado em segredo uma carta escrita pela Penélope ao Julián. O Miquel deduziu que a única direção para a qual a Penélope, do seu cativeiro, teria podido dirigir a missiva era para o andar dos pais do Julián, na Ronda de San António, contando que eles por sua vez a fizessem chegar ao filho, em Paris.
Decidiu, pois, visitar Sophie Carax a fim de recuperar aquela carta para a enviar a Julián. Ao visitar o domicílio da família Fortuny, o Miquel teve uma surpresa de mau agoiro: Sophie Carax já não residia ali. Tinha abandonado o marido uns dias atrás O Miquel tentou então falar com o chapeleiro, que passava os dias encerrado na sua loja carcomido pela raiva e pela humilhação. O Miquel insinuou-lhe que tinha vindo buscar uma carta que devia ter chegado em nome do seu filho Julián havia uns dias.
– Eu não tenho nenhum filho – foi a única resposta que obteve.
O Miquel Moliner saiu dali sem saber que aquela carta tinha ido parar às mãos da porteira do edifício e que muitos anos depois tu, Daniel, a encontrarias e lerias as palavras que a Penélope tinha enviado, desta vez do coração, ao Julián, e que ele nunca chegou a receber.
Ao sair da chapelaria Fortuny, uma vizinha da escada que se identificou como a Viçenteta abeirou-se dele e perguntou-lhe se estava à procura de Sophie. O Miquel assentiu.
– Sou amigo do Julián.
A Viçenteta informou-o de que Sophie estava a viver com dificuldades numa pensão situada numa viela atrás do edifício dos Correios. Miquel encontrou Sophie Carax numa divisão do quarto andar, encharcada de sombras e humidade. A mãe do Julián estava de frente para a janela sentada na borda de um catre no qual ainda jaziam duas malas fechadas como caixões encerrando os seus vinte e dois anos em Barcelona.
Ao ler a carta assinada pela Penélope que o Jorge Aldaya tinha entregado ao Miquel, Sophie derramou lágrimas de raiva.
– Ela sabe – murmurou. – Sabe, coitadinha…
– Sabe o quê? – perguntou o Miquel.
– A culpa é minha – disse Sophie. – A culpa é minha.
O Miquel segurava-lhe as mãos, sem compreender. Sophie não se atreveu a enfrentar-lhe o olhar.
– A Penélope e o Julián são irmãos – murmurou.
3.
Muitos anos antes de se converter na escrava de Antoni Fortuny, Sophie Carax tinha sido uma mulher que vivia do seu talento. Contava apenas dezanove anos quando chegou a Barcelona em busca de uma promessa de emprego que nunca se viria a materializar. Antes de morrer, o pai tinha-lhe conseguido referências para que entrasse ao serviço dos Benarens, uma próspera família de comerciantes alsacianos estabelecida em Barcelona.
O caloroso acolhimento que recebeu foi parte do problema. Monsieur Benarens tinha decidido acolhê-la de braços, e gónadas, abertos e a toda a força. Madame Benarens, não sem se apiedar dela e da sua má sorte, entregou-lhe cem pesetas e pô-la na rua.
Uma escola de música da Rua Diputación prestou-se a dar-lhe emprego como professora particular de piano e solfejo. Assim, Sophie Carax começou a sua rotina de visitar casarões apalaçados onde criadas engomadas e mudas a conduziam a salões de música.
Por essa altura, Sophie conheceu um jovem chapeleiro (pois assim se fazia ele chamar com orgulho corporativo) chamado Antoni Fortuny que parecia decidido a fazer-lhe a corte a qualquer preço, não tardou a propor-lhe casamento.
Foi em casa dos Valls que Sophie conheceu um dos maiores benfeitores e padrinhos financeiros do senhor Valls: don Ricardo Aldaya, herdeiro do império Aldaya. Ricardo Aldaya tinha-se casado meses atrás com uma rica herdeira.
Bastou a Sophie cruzar um olhar com don Ricardo para saber que estava perdida para sempre. O chapeleiro não via as marcas na pele, os cortes ou as queimaduras que lhe salpicavam o corpo. O chapeleiro não via o desespero no seu sorriso. Talvez por isso, aceitou a sua promessa de casamento. Já nessa altura ela pressentia que trazia o filho de Aldaya nas entranhas, mas receava dizer-lho, quase tanto como receava perdê-lo. Deu-lhe quinhentas pesetas, uma direcção na Rua Platería e a ordem de que se desfizesse da criança. Quando Sophie se recusou, esbofeteou-a.
4.
Sophie Carax nunca pensou que anos mais tarde voltaria a ver Ricardo (já um homem maduro à frente do império familiar, pai de dois filhos), nem que Aldaya regressaria para conhecer o filho que tinha querido suprimir por quinhentas pesetas.
Ricardo Aldaya concluíra que não se revia no seu primogénito Jorge. Havia anos que sabia do filho do chapeleiro. Decidiu arrancar o Julián daquele mundo irrespirável de mediocridade e pobreza para lhe abrir as portas do seu paraíso financeiro. Seria educado no colégio de San Gabriel.O Jorge viveria sempre à sombra do seu privilégio, num leito de rosas e fracassos. A Penélope, a bela Penélope, era mulher e portanto tesouro, não tesoureiro. O Julián, que tinha alma de poeta, e portanto de assassino, reunia as qualidades. Era só uma questão de tempo. Nunca, durante todo o tempo que o Julián passou com os Aldaya, como mais um (inclusivamente como o eleito), lhe ocorreu pensar que o Julián não desejava nada dele, excepto a Penélope. Não lhe ocorreu nem por um instante que secretamente o Julián o desprezava e que toda aquela farsa não passava para ele de um pretexto para estar perto da Penélope. .
Quando a mulher lhe anunciou que tinha descoberto o Julián e a Penélope nus em circunstâncias inequívocas, o universo inteiro pegou fogo. Quando o médico que foi examinar a Penélope confirmou que a rapariga tinha sido desflorada e que provavelmente estava grávida, a alma de don Ricardo Aldaya afundou-se no líquido espesso e viscoso do ódio cego. Via a sua própria mão na mão do Julián, a mão que tinha enterrado o punhal no mais profundo do seu coração. Em colaboração com o chapeleiro, que tanto tinha desprezado, conspirou para que o Julián desaparecesse da cena e fosse mandado para o Exército, onde daria ordens para que a sua morte fosse declarada acidente. Nessa altura já o império Aldaya se desmoronava em silêncio O Julián, como devia ter suspeitado, fugira.
A Penélope Aldaya deu à luz um rapaz. Quando finalmente abriram a porta e encontraram a Penélope, morta e deitada num charco do seu próprio sangue, a abraçar uma criatura roxa e brilhante, ninguém foi capaz de abrir a boca. Os dois corpos foram enterrados.
Quando o Jorge Aldaya, bêbado de culpa e vergonha, revelou o sucedido ao Miquel Moliner, este decidiu enviar ao Julián aquela carta assinada pela Penélope em que ela declarava que não o amava e lhe pedia que a esquecesse, anunciando-lhe um casamento fictício. Preferiu que o Julián acreditasse naquela mentira, e refizesse a vida à sombra de uma traição, a confiar-lhe a verdade. A essa altura já a família tinha caído em desgraça e a fortuna dos Aldaya desfazia-se em castelos de areia frente à maré da cobiça mais raivosa, da vingança e da história inevitável.
Partiram num alvorecer de 1926 no mais negro dos anonimatos, viajando sob um falso nome a bordo daquele navio que os levaria através do Atlântico até ao porto de La Plata. O Jorge e o pai compartilhavam o camarote. O velho Aldaya, pestilento de morte e doença, mal se tinha de pé. Os médicos aos quais não tinha permitido verem a Penélope temiam-no demasiado para lhe dizerem a verdade, mas ele sabia que a morte embarcara com eles e que aquele corpo que Deus lhe começara a roubar naquela manhã em que decidira procurar o seu filho Julián se consumia. Foi então que obrigou o seu filho Jorge, que tantas vezes tinha desprezado e a quem agora se via irremediavelmente obrigado a recorrer, a jurar que cumpriria a sua última vontade.
– Encontrarás o Julián Carax e matá-lo-ás. Jura-mo.
Um amanhecer, dois dias antes de chegar a Buenos Aires, o Jorge acordou e verificou que o beliche do pai estava vazio. Encontrou o roupão do pai abandonado sobre a popa do navio, ainda morno. Pôde então ver que o cardume de tubarões já não os seguia, e que uma dança de barbatanas dorsais se agitava em círculo ao longe. Durante a travessia, nenhum passageiro voltou a avistar o cardume de esqualos e, quando o Jorge Aldaya desembarcou em Buenos Aires e o oficial da alfândega lhe perguntou se viajava sozinho, limitou-se a assentir. Havia muito que viajava sozinho.
5.
Dez anos depois de desembarcar em Buenos Aires, Jorge Aldaya regressou a Barcelona. O homem que regressou a Espanha era apenas um mendigo, um saco de amargura e fracasso que só conservava a lembrança de que tudo o que sentia lhe tinha sido arrebatado e do ódio por quem considerava o culpado da sua ruína: Julián Carax.
Ainda lhe ardia na memória a promessa que fizera ao pai. Mal chegou a Barcelona, farejou o rasto de Julián para descobrir que Carax, tal como ele, também parecia ter-se desvanecido de uma Barcelona que já não era a que tinha deixado ao partir dez anos atrás. Foi por essa altura que se reencontrou com uma velha personagem da sua juventude, com aquele acaso desprendido e calculado do destino. Depois de uma assinalável carreira em reformatórios e prisões do Estado, Francisco Javier Fumero ingressara no Exército, atingindo o posto de tenente. Muitos auguravam-lhe um futuro de general, mas um turvo escândalo que nunca se chegaria a esclarecer originou a sua expulsão do Exército. Mesmo então, a sua reputação excedia o seu posto e as suas atribuições. Diziam muita coisa dele, mas temiam-no ainda mais. Francisco Javier Fumero, aquele rapaz tímido e perturbado que costumava apanhar as folhas caídas no pátio do colégio de San Gabriel, era agora um assassino. Corria o rumor de que Fumero liquidava notórias personagens por dinheiro, que despachava figuras políticas por encomenda de diversas mãos negras e que era a morte personificada.
Sabia pelas informações que pudera obter na editora Cabestany que Carax vivia em Paris, mas Paris era uma cidade muito grande e ninguém na editora parecia conhecer a direcção exacta. Ninguém a não ser uma mulher apelidada Monfort que se recusava a divulgá-la. Fumero seguira-a duas ou três vezes ao sair dos escritórios da editora sem que ela desse por isso.
Julián Carax era a única pessoa que Fumero se tinha proposto matar e não o tinha conseguido. Talvez por ter sido a primeira, e com o tempo tudo se aprende. Ainda se lembrava de Carax a beijar Penélope Aldaya. A sua Penélope.
6.
No Inverno de 1934, os irmãos Moliner conseguiram finalmente despejar o Miquel e expulsá-lo do Palacete de Puertaferrisa, que ainda hoje continua vazio e em estado de ruína. Só desejavam vê-lo na rua. Não me quis dizer nada nem recorrer a mim em busca de ajuda. Só soube que se tinha transformado quase num mendigo. Ao ver o quarto a que estava confinado, uma espécie de caixão sem janelas e com um catre prisional, peguei no Miquel e levei-o para casa. Não parava de tossir e parecia consumido. Casámo-nos numa manhã de Fevereiro num juízo municipal. O nosso casamento foi um casamento secreto. Vários meses depois da boda bateu à porta um indivíduo que disse chamar-se Jorge Aldaya. Ao reencontrarem-se depois de mais de dez anos, o Aldaya sorriu amargamente e disse: «Estamos todos amaldiçoados, Miquel. Tu, o Julián, o Fumero e eu.» Alegou que o motivo da sua visita era um gesto de reconciliação com o seu velho amigo Miquel na esperança de que este lhe providenciaria agora a maneira de contactar com o Julián Carax, pois tinha uma mensagem muito importante para ele da parte do seu falecido pai, don Ricardo Aldaya. O Miquel disse desconhecer onde se encontrava Carax.
Fui a amante do Julián durante duas semanas, mas seria a mulher do Miquel o resto da minha vida. Se algum dia estas páginas te chegarem às mãos e me julgares, como eu fiz ao escrevê-las e ver-me neste espelho de maldições e remorsos, recorda-me assim, Daniel.
O manuscrito do último romance do Julián chegou em fins de 1935. Não sei se por despeito ou por medo, entreguei-o ao impressor sem sequer o ler. As últimas poupanças do Miquel tinham já financiado adiantadamente a edição meses atrás. Cabestany, já nessa altura com problemas de saúde, não queria saber do resto para nada. Naquela mesma semana, o médico que examinava o Miquel foi ver-me à editora, muito preocupado. Explicou-me que, se o Miquel não abrandasse o ritmo de trabalho e não observasse repouso, o pouco que ele podia fazer para combater a tísica não dava em nada.
Ao voltar para casa, vi que Miquel discutia com alguém. A princípio julguei que se tratava de alguém do jornal, mas pareceu-me ouvir o nome do Julián na conversa. Dali pude vislumbrar o visitante. Perguntei-lhe quem era aquele homem e o que queria. – Era o Fumero. Veio trazer notícias do Julián. O Julián vai-se casar.
O casamento, pelo que se sabia, deveria ter lugar no princípio do Verão de 1936. Da noiva só se sabia o nome, que neste caso era mais que suficiente: Irene Marceau, a patroa do estabelecimento onde o Julián trabalhara como pianista durante anos.
O Fumero sabia também que o Julián nunca aceitaria defrontar-se com o seu antigo colega, moribundo e reduzido a um lamento. Por esse motivo instruiu claramente o Aldaya sobre os passos a seguir. Deveria confessar-lhe que a carta que a Penélope lhe escrevera anos atrás a anunciar-lhe o seu casamento e pedindo-lhe que a esquecesse era uma trapaça. Deveria revelar-lhe que fora ele próprio, o Jorge Aldaya, que tinha obrigado a irmã a redigir aquele rosário de mentiras enquanto ela chorava desesperadamente, proclamando aos quatro ventos o seu amor imortal pelo Julián. Deveria dizer-lhe que ela tinha estado à espera dele, com a alma desfeita e o coração a sangrar, desde então, morta de abandono. Isso bastaria. Bastaria para que Carax premisse o gatilho e a cara fatalmente se lhe desfizesse. Bastaria para que esquecesse todo o plano do casamento e não conseguisse albergar mais nenhum pensamento do que regressar a Barcelona em busca da Penélope e de uma vida derramada. E em Barcelona, aquela grande teia de aranha que ele tinha feito sua, o Fumero estaria à sua espera.
7.
O Julián Carax atravessou a fronteira francesa poucos dias antes de deflagrar a guerra civil.
Soubemos que o Julián estava em Barcelona no dia da rendição de Goded, ao receber a carta de Irene Marceau, na qual nos contava que o Julián tinha matado o Jorge Aldaya no decurso de um duelo no cemitério de Père Lachai-se. Antes mesmo de o Aldaya expirar, uma chamada anónima tinha alertado a polícia do sucedido. O Julián teve de fugir de Paris de imediato, perseguido pela polícia que o procurava por assassínio. Não tivemos nenhuma dúvida de quem tinha feito aquela chamada. Esperámos ansiosamente saber do Julián para o advertir do perigo que o espreitava e para o proteger de uma cilada pior do que aquela que o Fumero lhe tinha armado: descobrir a verdade. Três dias mais tarde, o Julián continuava sem dar sinal de vida. O Miquel não queria compartilhar comigo a sua preocupação, mas eu sabia perfeitamente o que ele estava a pensar.
O Julián tinha regressado para procurar a Penélope, e não a nós.
O chapeleiro disse-nos que o filho estava morto e que nos puséssemos a andar ou chamaria a polícia. Fomo-nos embora descoroçoados.
Durante dias percorremos cafés e lojas, perguntando pelo Julián.
8.
Naquela tarde, o vendedor ambulante de flores tinha telefonado para a redacção do Diário de Barcelona e deixado um recado para Miquel informando-o de que vira o homem que tínhamos descrito a vaguear perto do casarão como um espectro. Passava da meia-noite quando Miquel chegou ao número 32 da Avenida del Tibidabo. Embora houvesse dezassete anos que não o via, Miquel reconheceu em Julián aquele andar leve, quase felino. A silhueta aproximou-se lentamente dele, brandindo um objecto na mão direita, brilhante e alongado. Um vidro.
– Temos de ir embora daqui, Julián. O Fumero anda à tua procura. Aquilo do Aldaya foi uma armadilha.
Onde estava? Na casa de meu pai.
– Vamos embora daqui, Julián…
– Não há para onde ir – disse Carax, com uma serenidade que levou o amigo a observá-lo com detença.
Reparou então no revólver na mão de Julián, e na fria disposição no seu olhar. A campainha da porta arranhou o murmúrio do rádio. Miquel arrebatou a pistola das mãos de Carax e olhou-o fixamente.
– Dá-me a tua documentação, Julián.
Os três polícias fingiram sentar-se ao balcão. Um deles observava-os de esguelha. Os outros dois apalpavam o interior das gabardinas.
– A documentação, Julián. Agora. Carax abanou a cabeça em silêncio.
– Restam-me um, dois meses, se tiver sorte. Um dos dois tem de sair daqui, Julián. Tu tens mais pontos que eu. Não sei se encontrarás a Penélope. Mas a Nuria espera-te.
– A Nuria é tua mulher.
– Lembra-te do acordo que fizemos. Quando eu morrer, tudo o que é meu será teu…
– … menos os sonhos.
Sorriram pela última vez. Julián estendeu-lhe o passaporte. Miquel colocou-o juntamente com o exemplar de A Sombra do Vento que trazia no sobretudo desde o dia em que o recebera.
– Até breve – murmurou Julián.
– Não há pressa. Eu esperarei.
Precisamente quando os três polícias se voltavam para eles, Miquel levantou-se da mesa e dirigiu-se para eles. Ao princípio só viram um moribundo pálido e trémulo que lhes sorria enquanto o sangue assomava pelas comissuras dos lábios magros, sem vida. Quando repararam no revólver na sua mão direita, Miquel já estava apenas a três metros deles. Um deles quis gritar, mas o primeiro disparo estoirou-lhe com o maxilar inferior. O corpo caiu inerte, de joelhos, aos pés de Miquel. Miquel Moliner volveu o olhar pela última vez e viu o seu amigo Julián correr pela rua abaixo. Tinha trinta e seis anos, mais do que aqueles que tinha esperado viver. Antes de se abater sobre o passeio semeado de vidro ensanguentado, já estava morto.
9.
O cadáver do Miquel foi abandonado numa viela do Raval doze horas mais tarde para que a morte dele não pudesse ser relacionada com a dos agentes. Quando o corpo chegou finalmente à morgue, estava morto havia dois dias. O Miquel tinha deixado toda a sua documentação em casa antes de sair. Tudo o que os funcionários do necrotério encontraram foi um passaporte em nome de Julián Carax, desfigurado, e um exemplar de A Sombra do Vento. A polícia concluiu que o falecido era Carax.
O passaporte ainda referia como residência o andar dos Fortuny na Ronda de San António.
Por essa altura, a notícia já tinha chegado aos ouvidos do Fumero, que foi ao necrotério para se despedir do Julián. Encontrou-se lá com o chapeleiro, que a polícia tinha ido buscar para proceder à identificação do corpo. O senhor Fortuny, que não via o Julián havia dois dias, temia o pior. Ao reconhecer o corpo que apenas uma semana antes lhe tinha batido à porta a perguntar pelo Julián (e que tinha tomado por um esbirro do Fumero), desatou aos gritos e foi-se embora. A polícia pressupôs que aquela reacção era uma admissão de reconhecimento. O Fumero, que tinha presenciado a cena, aproximou-se do corpo e examinou-o em silêncio. Havia dezassete anos que não via o Julián Carax. Quando reconheceu o Miquel Moliner, limitou-se a sorrir e assinou o relatório forense confirmando que aquele corpo pertencia a Julián Carax e ordenando a sua transferência imediata para uma vala comum em Montjuíc.
Durante muito tempo perguntei a mim mesmo por que razão o Fumero haveria de fazer uma coisa assim. Mas aquilo não era mais que a lógica do Fumero. Ao morrer com a identidade do Julián, o Miquel tinha-lhe proporcionado involuntariamente o álibi perfeito. A partir daquele instante, Julián Carax não existia. Não haveria qualquer vínculo legal que permitisse relacionar o Fumero com o homem que, mais tarde ou mais cedo, esperava encontrar e assassinar. Eram dias de guerra e muito poucos pediriam explicações pela morte de alguém que nem sequer tinha nome. Julián tinha perdido a identidade. Era uma sombra. Passei dois dias à espera do Miquel ou do Julián em casa, pensando que enlouquecia. Ao terceiro dia, segunda-feira, voltei a trabalhar na editora. O senhor Cabestany tinha dado entrada no hospital havia umas semanas e já não voltaria ao seu gabinete. O filho mais velho, Álvaro, tinha tomado conta do negócio. Não disse nada a ninguém. Não tinha a quem.
Nessa mesma manhã recebi na editora a chamada de um funcionário da morgue, Manuel Gutiérrez Fonseca. O senhor Gutiérrez Fonseca explicou-me que o corpo de um tal Julián Carax tinha chegado ao necrotério e que, ao confrontar o passaporte do falecido e o nome do autor do livro que trazia quando dera entrada na morgue, e suspeitando, se não de uma clara irregularidade, de um certo fechar de olhos ao regulamento por parte da polícia, tinha sentido o dever moral de telefonar para a editora a fim de dar parte do sucedido. Ao ouvi-lo, julguei que morria. A primeira coisa que pensei foi que se tratava de uma cilada do Fumero. O senhor Gutiérrez Fonseca expressava-se com o esmero do funcionário consciencioso, embora houvesse qualquer coisa mais que gotejava na sua voz, qualquer coisa que nem ele mesmo teria conseguido explicar. Eu tinha atendido a chamada no gabinete do senhor Cabestany. Ao introduzir a chave na porta do andar compreendi que a fechadura tinha sido forçada. Fiquei paralisada. A maçaneta começou a rodar a partir do interior. Perguntei a mim mesma se ia morrer assim, numa escada escura e sem saber o que tinha sido feito do Miquel. A porta abriu-se e enfrentei o olhar obscuro de Julián Carax. Que Deus me perdoe, mas naquele instante senti que a vida me voltava e dei graças ao céu por me devolver o Julián em vez do Miquel.
Fundimo-nos num abraço interminável, mas, quando lhe procurei os lábios, o Julián afastou-se e baixou os olhos. Fechei a porta e, pegando no Julián pela mão, guiei-o até ao quarto. Deitámo-nos na cama, abraçados em silêncio. Entardecia e as sombras do andar ardiam de púrpura. Ouviam-se disparos isolados ao longe, como todas as noites desde que a guerra começara. O Julián chorava sobre o meu peito e senti que me invadia um cansaço que escapava às palavras. Mais tarde, caída a noite, os nossos lábios encontraram-se, e ao abrigo daquela escuridão urgente desfizemo-nos daquelas roupas que cheiravam a medo e a morte.
10.
Fui acordado pelo tamborilar da chuva ao alvorecer. A cama vazia, o quarto alumiado de uma treva cinzenta.
Encontrei o Julián sentado diante daquilo que fora a secretária do Miquel, a acariciar as teclas da sua máquina de escrever. Ergueu o olhar e brindou-me com aquele sorriso morno, distante, que dizia que ele nunca seria meu. Senti desejos de lhe cuspir a verdade, de o ferir. Teria sido tão fácil! Revelar-lhe que a Penélope estava morta. Que vivia de ilusões. Que eu era tudo quanto tinha agora no mundo.
Foi por essa altura que comecei a ouvir pelas ruas as histórias acerca de um indivíduo que quebrava as montras das livrarias de noite e queimava livros. Noutras ocasiões, o estranho vândalo introduzia-se numa biblioteca ou na sala de um coleccionador. Levava sempre dois ou três volumes, que queimava. Em Fevereiro de 1938 fui a um alfarrabista para perguntar se era possível encontrar algum livro de Julián Carax no mercado. O empregado disse-me que era impossível: tinha andado alguém a fazê-los desaparecer. Ele próprio tivera um par e vendera-os a um indivíduo muito estranho, que ocultava o rosto e ao qual dificilmente se conseguia decifrar a voz.
Às vezes o Julián desaparecia durante dias inteiros. Não tardou que as suas ausências fossem de semanas. Saía e voltava sempre de noite. Nunca dava explicações ou, se o fazia, limitava-se a fornecer pormenores sem sentido. Disse-me que tinha estado em França. Paris, Lião, Nice. Ocasionalmente chegavam cartas de França em nome de Laín Coubert. Eram sempre de alfarrabistas, coleccionadores. Alguém tinha localizado um exemplar perdido das obras de Julián Carax. Nessa altura desaparecia vários dias e regressava como um lobo, tresandando a queimado e a rancor.
Foi durante uma dessas ausências que encontrei o chapeleiro Fortuny no claustro da catedral, a vaguear como um iluminado. Ainda me lembrava da vez que tinha ido com o Miquel perguntar pelo seu filho Julián, havia dois anos. Conduziu-me a um recanto e disse-me confidencialmente que sabia que o Julián estava vivo, nalgum sítio, mas que suspeitava que o filho não podia entrar em contacto connosco por algum motivo que não conseguia discernir. «Qualquer coisa relacionada com aquele desalmado do Fumero.» Disse-lhe que eu estava convencida do mesmo. Os anos da guerra estavam a revelar-se muito prósperos para o Fumero. As suas alianças mudavam de mês para mês, dos anarquistas para os comunistas, e dali para o que viesse. Uns e outros acusavam-no de espião, de esbirro, de herói, de assassino, de conspirador, de intriguista, de salvador ou de demiurgo. Pouco importava. Todos o temiam. Todos o queriam do seu lado. Talvez demasiado ocupado com as intrigas da Barcelona da guerra, o Fumero parecia ter esquecido o Julián. Provavelmente, como o chapeleiro, imaginava-o já foragido e longe do seu alcance.
O senhor Fortuny perguntou-me se eu era uma velha amiga do filho e eu disse-lhe que sim. Pediu-me que lhe falasse do Julián, do homem em que se tinha transformado, porque ele, confessou-me entristecido, não o conhecia. «A vida separou-nos, sabe?» Contou-me que tinha percorrido todas as livrarias de Barcelona à procura dos romances do Julián, mas não havia maneira de os encontrar. Alguém lhe contara que um louco recorria o mapa à procura deles para os queimar. Fortuny estava convencido de que o culpado não era senão o Fumero. Não o contradisse. Menti como pude, por piedade ou por despeito, não sei. Disse-lhe que julgava que o Julián tinha regressado de Paris, que estava bem e que me constava que apreciava muito o chapeleiro Fortuny e que, logo que as circunstâncias o tornassem possível, se reuniria de novo a ele. «E esta guerra – lamentava-se ele -, que apodrece tudo.» Antes de nos despedirmos insistiu em dar-me a sua direcção e a da ex-mulher, Sophie, com a qual tinha voltado a reatar o contacto depois de longos anos de «mal-entendidos». Sophie vivia agora em Bogotá com um prestigiado médico, disse-me ele. Geria a sua própria escola de música e escrevia sempre a perguntar pelo Julián.
– Já é a única coisa que nos une, sabe? A lembrança. Uma pessoa comete muitos erros na vida, menina, e só se apercebe quando é velha. Diga-me, a menina tem fé?
Despedi-me prometendo-lhe informá-lo a ele e a Sophie se tivesse notícias do Julián.
– Nada faria a mãe mais feliz do que voltar a saber dele. Vocês, as mulheres, ouvem mais o coração e menos as parvoeiras – concluiu o chapeleiro com tristeza. – Por isso vivem mais.
Apesar de ter ouvido tantas histórias virulentas acerca dele, não pude evitar sentir pena daquele pobre velho que quase não tinha mais que fazer no mundo do que esperar o regresso do filho e parecia viver das esperanças de recuperar o tempo perdido graças a um milagre dos santos que visitava com tanta devoção nas capelas da catedral.
Tinha-o imaginado como um ogre, um ser vil e rancoroso, mas pareceu-me um homem bondoso, talvez ofuscado, perdido como todos. Talvez porque me lembrava o meu próprio pai, que se escondia de todos e de si próprio naquele refúgio de livros e sombras, talvez porque, sem ele o suspeitar, também nos unia a ânsia de recuperar o Julián, afeiçoei-me a ele e transformei-me na sua única amiga. Sem que Julián o soubesse, ia vê-lo amiúde ao andar da Ronda de San António. O chapeleiro já não trabalhava.
– Não tenho nem as mãos, nem a vista, nem os clientes… – dizia. Esperava-me quase todas as quintas-feiras e oferecia-me café, bolachas e doces que ele mal provava. Passava as horas a falar-me da infância do Julián, de como trabalhavam juntos na chapelaria, a mostrar-me fotografias. Conduzia-me ao quarto do Julián, que mantinha imaculado como um museu, e mostrava-me velhos cadernos, objectos insignificantes que ele adorava como relíquias de uma vida que nunca tinha existido, sem se aperceber de que já mos tinha mostrado antes, que já me relatara outro dia todas aquelas histórias. Uma dessas quintas-feiras cruzei-me na escada com um médico que acabava de ir ver o senhor Fortuny. Perguntei-lhe como estava o chapeleiro e ele olhou-me de esguelha.
– A senhora é família dele?
Disse-lhe que era o mais próximo disso que o pobre homem tinha. O médico disse-me então que Fortuny estava muito doente, que era questão de meses.
– O que é que ele tem?
– Poderia dizer à senhora que é o coração, mas o que o mata é a solidão. As recordações são piores que as balas.
Ao ver-me, o chapeleiro ficou contente e confessou-me que aquele médico não lhe merecia confiança. Os médicos são uma espécie de bruxos de pacotilha, dizia. O chapeleiro tinha sido toda a vida um homem de profundas convicções religiosas e a velhice só as acentuara. Explicou-me que via em todo o lado a mão do demónio. O demónio, confessou-me, ofusca a razão e perde os homens.
Era o demónio que tinha levado o Julián de junto dele, acrescentou.
– Deus dá-nos a vida, mas o caseiro do mundo é o demónio… Passávamos a tarde entre teologia e melindres bafientos.
Certa vez disse ao Julián que, se queria voltar a ver o pai vivo, o melhor era apressar-se. Dava-se o caso de que o Julián tinha andado também a visitar o pai sem que ele o soubesse. De longe, ao crepúsculo, sentado no outro extremo de uma praça, a vê-lo envelhecer. O Julián replicou que preferia que o velho ficasse com a recordação do filho que tinha fabricado na sua mente durante aqueles anos e não com a realidade na qual se tinha transformado.
– Essa, guarda-la para mim – disse-lhe eu, arrependendo-me de imediato.
Não disse nada, mas por um instante pareceu-me que lhe voltava a lucidez e se apercebia do inferno no qual nos tínhamos encurralado. Os prognósticos do médico não tardaram a tornar-se realidade. O senhor Fortuny não chegou a ver o fim da guerra. Encontraram-no sentado no seu cadeirão, a ver as fotografias antigas de Sophie e do Julián. Crivado de recordações.
Os últimos dias da guerra foram o prelúdio do inferno. A cidade vivera o combate à distância, como uma ferida que lateja adormecida. Tinham transcorrido meses de escaramuças e lutas, bombardeamentos e fome. O espectro de assassínios, lutas e conspirações andava há anos a corroer a alma da cidade, mas, mesmo assim, muitos queriam acreditar que a guerra continuava longe, que era um temporal que passaria de largo. Se é possível, a espera tornou o inevitável pior. Quando a dor despertou, não houve misericórdia. Nada alimenta o esquecimento como uma guerra, Daniel. Todos nos calamos e as pessoas esforçam-se por nos convencer de que aquilo que vimos, aquilo que fizemos, o que apreendemos de nós próprios e dos outros, é uma ilusão, um pesadelo passageiro. As guerras não têm memória e ninguém se atreve a compreendê-las até não haver vozes para contar o que aconteceu, até chegar o momento em que já ninguém as reconhece e regressam, com outra cara e outro nome, para devorar o que deixaram atrás.
Por essa altura o Julián já quase não tinha livros para queimar. Era um passatempo que já passara para mãos mais importantes. A morte do pai, da qual nunca falaria, tinha-o transformado num inválido no qual já não ardia nem a raiva nem o ódio que o tinham consumido ao princípio. Vivíamos de rumores, em reclusão. Soubemos que o Fumero traíra todos os que o tinham exaltado durante a guerra e que agora estava ao serviço dos vencedores. Dizia-se que ele estava a justiçar pessoalmente – estoirando-lhes a cabeça com um tiro na boca – os seus principais aliados e protectores dos calabouços do castelo de Montjuic. O mecanismo do esquecimento começou a matraquear no mesmo dia em que as armas se calaram. Naqueles dias aprendi que nada mete mais medo do que um herói que vive para contar, para contar o que todos os que caíram ao seu lado nunca poderão contar. As semanas que se seguiram à queda de Barcelona foram indescritíveis. Derramou-se tanto ou mais sangue durante aqueles dias do que durante os combates, só quem em segredo e às escondidas. Quando finalmente a paz chegou, cheirava àquela paz que enfeitiça as prisões e os cemitérios, uma mortalha de silêncio e vergonha que apodrece sobre a alma e nunca se vai. Não havia mãos inocentes nem olhares brancos. Os que lá estivemos, todos sem excepção, ficaremos com o segredo connosco até à morte.
A calma restabelecia-se entre receios e ódios, mas o Julián e eu vivíamos na miséria. Tínhamos gasto todas as poupanças e as presas das andanças nocturnas de Laín Coubert, e não restava nada para vender em casa. Eu procurava desesperadamente
emprego como tradutora, mecanógrafa ou como sopeira, mas aparentemente a minha passada afiliação com Cabestany tinha-me marcado como indesejável e alvo de suspeitas indizíveis. Um funcionário de fato reluzente, brilhantina e bigode fininho, um das centenas que pareciam estar a sair de debaixo das pedras, durante aqueles meses, insinuou-me que uma mulher atraente como eu não tinha nada que recorrer a empregos tão mundanos. Os vizinhos, que aceitavam de boa fé a minha história de que vivia a cuidar do meu pobre marido Miquel que ficara inválido e desfigurado na guerra, ofereciam-nos esmolas de leite, queijo ou pão, inclusivamente às vezes peixe salgado ou enchidos que os familiares lhes mandavam da aldeia. Após meses de penúria, convencida de que passaria muito tempo antes que pudesse arranjar emprego, decidi urdir um estratagema que fui buscar emprestado a um dos romances do Julián.
Escrevi à mãe do Julián, em Bogotá, em nome de um suposto advogado de extracção recente com quem o falecido senhor Fortuny se tinha aconselhado nos seus últimos dias para pôr os assuntos em ordem. Informava-a de que, tendo o chapeleiro morrido intestado, o seu património, no qual se incluía o andar da Ronda de San António e a loja sita no mesmo imóvel, era agora propriedade teórica do seu filho Julián, que se supunha a viver no exílio em França. Visto que os direitos de sucessão não haviam sido satisfeitos, e encontrando-se ela no estrangeiro, o advogado, que baptizei como José Maria Requejo em lembrança do primeiro rapaz que me tinha beijado na boca, pedia-lhe autorização para iniciar as diligências pertinentes e solucionar a transferência das propriedades para o nome do seu filho Julián, com quem pensava contactar através da embaixada espanhola em Paris assumindo a titularidade das mesmas a título temporário e transitório, assim como uma certa compensação económica. Solicitava-lhe igualmente que entrasse em contacto com o administrador do prédio para que remetesse a documentação e os pagamentos destinados a satisfazer as despesas do prédio para o escritório do advogado Requejo, em cujo nome abri um apartado de correio e ao qual atribuí uma direcção fictícia, uma velha garagem desocupada a duas ruas do casarão em ruínas dos Aldaya. A minha esperança era que, cega pela possibilidade de ajudar o Julián e de voltar a estabelecer contacto com ele, Sophie não se deteria a questionar todo aquele arrazoado legal e consentiria em nos ajudar dada a sua próspera situação na longínqua Colômbia.
Um par de meses mais tarde, o administrador do prédio começou a receber um vale mensal cobrindo as despesas do andar da Ronda de San António e os emolumentos destinados ao escritório de advogados de José Maria Requejo, que se encarregava de mandar sob a forma de cheque ao portador para o apartado 2321 de Barcelona, tal como lhe indicava Sophie Carax na sua correspondência.
O administrador, reparei, ficava todos os meses com uma percentagem não autorizada, mas eu preferi não dizer nada. Assim ele ficava satisfeito e não fazia perguntas perante tão fácil negócio. Com o resto, o Julián e eu tínhamos o suficiente para sobreviver. Assim passaram anos terríveis, sem esperança. Lentamente, tinha conseguido alguns trabalhos como tradutora. Já ninguém se lembrava de Cabestany e praticava-se uma política de perdão, de esquecer de escantilhão velhas rivalidades e rancores. Eu vivia com a perpétua ameaça de que o Fumero decidisse voltar a escarafunchar no passado e reiniciar a perseguição ao Julián. Às vezes convencia-me de que não, de que já o teria dado como morto, ou o teria esquecido. O Fumero já não era o ferrabrás de anos antes. Agora era uma personalidade pública, um homem de carreira no Regime, que não se podia permitir o luxo do fantasma de Julián Carax. Outras vezes acordava a meio da noite, com o coração a bater e ensopada em suor, julgando que a polícia estava a bater à porta. Receava que algum dos vizinhos suspeitasse daquele marido doente, que nunca saía de casa, que às vezes chorava e batia nas paredes como um louco, e que nos denunciasse à polícia. Receava que Julián fugisse de novo, que decidisse sair à caça dos seus livros para os queimar, para queimar o pouco que restava de si mesmo e apagar definitivamente qualquer sinal de que alguma vez tivesse existido. De tanto recear, esqueci-me de que me fazia velha, que a vida me passava ao lado, que tinha sacrificado a minha juventude amando um homem destruído, sem alma, apenas um espectro.
Mas os anos passaram em paz. O tempo passa tanto mais depressa quanto mais vazio está. As vidas sem significado passam de largo como comboios que não param na nossa estação. Entrementes, as cicatrizes da guerra fechavam-se à força. Encontrei trabalho num par de editoras. Passava a maior parte do dia fora de casa. Tive amantes sem nome, rostos desesperados que encontrava num cinema ou no metro, com os quais trocava a minha solidão. Depois, absurdamente, a culpa devorava-me e ao ver o Julián dava-me vontade de chorar e jurava a mim mesma que nunca mais voltaria a atraiçoá-lo, como se lhe devesse alguma coisa. Nos autocarros ou na rua surpreendia-me a olhar para outras mulheres mais novas do que eu com crianças pela mão. Pareciam felizes, ou em paz, como se aqueles pequenos seres, na sua insuficiência, preenchessem todos os vazios sem resposta. Nessa altura recordava-me dos dias em que, fantasiando, tinha chegado a imaginar-me como uma daquelas mulheres, com um filho nos braços, um filho do Julián. Depois lembrava-me da guerra e de que aqueles que a faziam também tinham sido crianças.
Quando começava a acreditar que o mundo nos tinha esquecido, apareceu-me um dia um indivíduo em casa. Era um tipo jovem, quase imberbe, um aprendiz que se ruborizava quando me olhava nos olhos. Vinha perguntar pelo senhor Miquel Moliner,
supostamente procedendo a uma rotineira actualização de um arquivo do colégio de jornalistas. Disse-me que talvez o senhor Moliner pudesse ser beneficiário de uma pensão mensal, mas que para a processar era necessário actualizar uma série de dados. Disse-lhe que o senhor Moliner já não morava ali desde o princípio da guerra, que tinha partido para o estrangeiro. Respondeu-me que lamentava muito e partiu com um sorriso oleoso e o seu acne de aprendiz de bufo. Soube que tinha de fazer desaparecer o Julián de casa nessa mesma noite, sem falta. Por essa altura o Julián tinha-se reduzido a quase nada. Era dócil como uma criança e toda a sua vida parecia depender dos momentos que passávamos juntos algumas noites a ouvir música no rádio, enquanto eu o deixava pegar-me na mão e ele ma acariciava em silêncio.
Nessa mesma noite, utilizando as chaves do andar da Ronda de San António que o administrador do prédio remetera ao inexistente advogado Requejo, acompanhei o Julián de regresso à casa onde tinha crescido. Instalei-o no seu quarto e prometi-lhe que voltaria no dia seguinte e que devíamos ter muito cuidado.
– O Fumero anda outra vez à tua procura – disse-lhe.
Assentiu vagamente, como se não se lembrasse, ou já não lhe importasse quem era Fumero. Assim passámos várias semanas. Eu ia à noite ao andar, depois da meia-noite. Perguntava ao Julián o que tinha feito durante o dia e ele olhava-me sem compreender. Passávamos a noite juntos, abraçados, e eu partia ao amanhecer, prometendo-lhe voltar assim que pudesse. Ao sair, deixava o andar fechado à chave. O Julián não tinha nenhuma cópia. Preferia tê-lo preso a morto.
Ninguém voltou a passar por casa para me perguntar pelo meu marido, mas eu encarreguei-me de fazer correr pelo bairro que o meu marido estava em França. Escrevi um par de cartas para o consulado espanhol em Paris dizendo que me constava que o cidadão espanhol Julián Carax estava na cidade e solicitando a sua ajuda para o localizar. Supus que, mais tarde ou mais cedo, as cartas chegariam às mãos adequadas. Tomei todas as precauções, mas sabia que era tudo uma questão de tempo. As pessoas como o Fumero nunca deixam de odiar. Não há sentido nem razão no seu ódio. Odeiam como respiram.
O andar da Ronda de San António era um andar de cobertura. Descobri que havia uma porta de acesso ao terraço que dava para a escada. Os terraços de todo o quarteirão formavam uma rede de pátios geminados separados por muros de apenas um metro onde os vizinhos vinham estender a roupa. Não tardei a encontrar um edifício do outro lado do quarteirão, com fachada para a Rua Joaquín Costa, do qual se podia ter acesso ao terraço e, uma vez ali, saltar o muro e chegar ao edifício da Ronda de San António sem que ninguém me pudesse ver entrar ou sair do prédio. Numa ocasião recebi uma carta do administrador dizendo-me que alguns vizinhos tinham notado ruídos no andar dos Fortuny. Respondi em nome do advogado Requejo alegando que ocasionalmente um ou outro elemento do escritório tivera de ir buscar papéis ou documentos ao andar e que não havia motivo para alarme, embora os ruídos fossem nocturnos. Acrescentei um certo rodeio para dar a entender que, entre cavalheiros, contabilistas e advogados, uma casa de encontros secreta era mais sagrada do que o Domingo de Ramos. O administrador, mostrando solidariedade corporativa, respondeu que não me preocupasse minimamente, que ele se encarregava da situação.
Naqueles anos, desempenhar o papel do advogado Requejo foi a minha única diversão. Uma vez por mês ia visitar o meu pai ao Cemitério dos Livros Esquecidos. Ele nunca mostrou interesse em conhecer aquele marido invisível e eu nunca me ofereci para lho apresentar. Contornávamos o assunto na nossa conversa como navegantes experimentados que evitam um escolho ao lume de água, esquivando o olhar. Às vezes, ficava a olhar-me em silêncio e perguntava-me se precisava de ajuda, se havia alguma coisa que ele pudesse fazer. Alguns sábados, ao amanhecer, acompanhava o Julián a ver o mar. Subíamos ao terraço e passávamos para o edifício contíguo para sairmos na Rua Joaquín Costa. Dali descíamos até ao porto através de vielas do Raval. Ninguém nos saía ao caminho. Receavam o Julián, mesmo de longe. Às vezes chegávamos até ao quebra-mar. O Julián gostava de se sentar nas rochas, a olhar para a cidade. Passávamos horas assim, quase sem trocarmos uma palavra. Uma ou outra tarde enfiávamo-nos num cinema, quando a sessão já tinha começado. Na escuridão ninguém reparava no Julián. À medida que os meses passavam aprendi a confundir a rotina com a normalidade, e com o tempo acabei por acreditar que o meu plano fora perfeito. Pobre imbecil!
12.
1945, um ano de cinzas. Tinham passado apenas seis anos desde o fim da guerra e, embora se sentissem a cada passo as suas cicatrizes, quase ninguém falava abertamente dela. Agora falava-se da outra guerra, a mundial, que tinha empestado o mundo com um fedor a carniça e baixeza de que nunca voltaria a libertar-se. Eram anos de escassez e miséria, estranhamente abençoados por aquela paz que os mudos e os entrevados inspiram, a meio caminho entre a pena e a repugnância. Após anos de procurar trabalho como tradutora em vão, encontrei finalmente um emprego como revisora de provas numa editora fundada por um empresário de recente extracção chamado Pedro Sanmartí.
O empresário tinha edificado o negócio investindo a fortuna do sogro, que a seguir instalara num asilo em frente do lago de Banolas à espera de receber pelo correio a sua certidão de óbito. Sanmartí, que gostava de cortejar rapariguinhas com metade da sua idade, tinha-se beatificado pelo lema na altura tão em voga do homem que se fez a si mesmo. Arranhava um inglês com sotaque de Vilanova i La Geltrú, convencido de que era o idioma do futuro, e rematava as suas frases com a muleta do «Okey».
A editora (que Sanmartí baptizara com o peregrino nome de «Endymion» porque lhe soava a catedralesco e propício para fazer caixa) publicava catecismos, manuais de boas maneiras e uma colecção de séries romanceadas de leitura edificante protagonizadas por freirinhas de comédia ligeira, pessoal heróico da Cruz Vermelha e funcionários felizes e de alta fibra apostólica. Editávamos também uma série de historietas de soldados americanos intitulada «Comando Coragem», que fazia furor no seio de uma juventude desejosa de heróis com aspecto de comer carne sete dias por semana. Eu tinha feito uma boa amiga na empresa na pessoa da secretária de Sanmartí, uma viúva de guerra chamada Mercedes Prieto com a qual não tardei a sentir uma afinidade completa e com a qual me conseguia entender com um simples olhar ou um sorriso. A Mercedes e eu tínhamos muito em comum: éramos duas mulheres à deriva, rodeadas de homens que estavam mortos ou se tinham escondido do mundo. A Mercedes tinha um filho de sete anos doente de distrofia muscular que criava como podia. Tinha apenas trinta e dois anos, mas lia-se-lhe a vida nos sulcos da pele. Durante todos aqueles anos, a Mercedes foi a única pessoa à qual me senti tentada a contar tudo, a abrir-lhe a minha vida.
Foi ela que me contou que Sanmartí era um grande amigo do cada dia mais condecorado inspector-chefe Francisco Javier Fumero. Faziam ambos parte de uma camarilha de indivíduos surgidos de entre as cinzas da guerra que alastrava como uma teia de aranha pela cidade, inexorável. A nova sociedade. Um belo dia o Fumero apareceu na editora. Ia visitar o seu amigo Sanmartí, com o qual combinara ir almoçar. Eu, com uma desculpa qualquer, escondi-me na sala do arquivo até ambos saírem. Quando voltei à minha secretária, a Mercedes lançou-me um olhar que dizia tudo. Desde então, cada vez que o Fumero aparecia nos escritórios da editora, ela avisava-me para eu me esconder.
Não passava um dia que Sanmartí não tentasse levar-me a jantar, convidar-me para ir ao teatro ou ao cinema com qualquer desculpa. Eu respondia sempre que o meu marido estava à minha espera em casa e que a mulher dele devia estar preocupada, que se fazia tarde. A senhora Sanmartí, que funcionava como móvel ou fardo mutável, cotando-se muito abaixo do obrigatório Bugatti na escala de afectos do marido, parecia ter já perdido o seu papel no sainete daquele casamento, uma vez passada a fortuna do sogro para as mãos de Sanmartí.
A Mercedes já me tinha advertido do que a casa gastava. Sanmartí, dotado de uma capacidade de concentração limitada no espaço e no tempo, tinha apetite pela carne fresca e pouco vista, concentrando as suas bagatelas dom-juanescas na recém-chegada, que neste caso era eu. Sanmartí lançava mão de todos os recursos para iniciar uma conversa comigo.
– Dizem-me que o teu marido, esse talMoliner, é escritor… Se calhar estaria interessado em escrever um livro sobre o meu amigo Fumero, para o qual já tenho título: Fumero, o Terror do Crime ou A Lei das Ruas. Que dizes tu, Nurieta?
– Agradeço-lhe imenso, senhor Sanmartí, mas é que o Miquel está enfronhado num romance e não me parece que neste momento possa…
Sanmartí ria às gargalhadas.
– Um romance! Valha-me Deus, Nurieta… O romance está morto e enterrado. Dizia-mo no outro dia um amigo que acaba de chegar de Nova Iorque. Os americanos estão a inventar uma coisa que se chama televisão e que vai ser como o cinema, mas em casa. Nunca mais serão precisos livros, nem missa, nem nada de nada. Diz ao teu marido que se deixe de romances. Se ao menos tivesse nome, fosse futebolista ou toureiro… Olha, que achas de pegarmos no Bugatti e irmos comer uma paelha a Castelldefels para discutir tudo isto? É que tens de contribuir com um pouco da tua vontade… Bem sabes que eu gostaria de te ajudar. E ao teu maridinho também. Bem sabes que neste país, sem padrinhos, nada feito.
Comecei a vestir-me como uma viúva do Corpo de Deus ou uma daquelas mulheres que parecem confundir a luz do sol com o pecado mortal. Ia trabalhar com o cabelo apanhado num carrapito e sem pintura. Apesar dos meus estratagemas, Sanmartí continuava a polvilhar-me com as suas insinuações, sempre suspensas daquele sorriso untuoso e gangrenado de desprezo que caracteriza os eunucos prepotentes que pendem como morcelas tumefactas dos altos escalões de todas as empresas. Tive duas ou três entrevistas na perspectiva de outros empregos, mas mais tarde ou mais cedo acabava por deparar com outra versão de Sanmartí. Cresciam como uma praga de cogumelos que fazem ninho no esterco com que se semeiam as empresas. Um deles deu-se ao trabalho de telefonar a Sanmartí e dizer-lhe que Nuria Monfort andava à procura de emprego nas suas costas. Sanmartí convocou-me ao seu gabinete, magoado de ingratidão. Pôs-me a mão na face e fez menção de uma carícia. Os dedos cheiravam a tabaco e a suor. Fiquei lívida.
– Mulher, se não estás satisfeita, só tens de mo dizer. Que posso eu fazer para melhorar as tuas condições de trabalho? Bem sabes que te aprecio e magoa-me saber por terceiros que nos queres deixar. Que tal se tu e eu fossemos jantar por aí e fizéssemos as pazes?
Tirei-lhe a mão da minha cara, sem conseguir ocultar mais a repugnância que me causava.
– Desapontas-me, Nuria. Tenho de te confessar que não vejo em ti espírito de equipa nem fé no projecto desta empresa.
A Mercedes já me tinha avisado de que, mais tarde ou mais cedo, havia de acontecer qualquer coisa assim. Dias depois, Sanmartí, que competia em gramática com um orangotango, começou a devolver todos os manuscritos que eu corrigia alegando que estavam cheios de erros. Quase todos os dias ficava no escritório até às dez ou onze da noite, a refazer uma e outra vez páginas e páginas com os riscos e comentários de Sanmartí.
– Demasiados verbos no passado. Soa a morto, sem garra… O infinito não se usa a seguir a ponto e vírgula. Toda a gente sabe isso…
Algumas noites, Sanmartí ficava também até tarde, fechado no seu gabinete. A Mercedes procurava estar lá, mas em mais de uma ocasião Sanmartí mandava-a para casa. Nessa altura, quando ficávamos a sós na editora, Sanmartí saía do seu gabinete e aproximava-se da minha secretária.
– Trabalhas muito, Nurieta. O trabalho não é tudo. Também épreciso a pessoa divertir-se. E tu ainda és nova. Embora a juventude passe e nem sempre saibamos tirar partido dela.
Sentava-se na borda da minha secretária e olhava-me fixamente. Às vezes colocava-se atrás de mim e ficava ali durante um par de minutos e eu podia sentir o seu hálito fétido no cabelo. Outras vezes poisava-me a mão nos ombros.
– Estás tensa, mulher. Descontrai-te.
Eu tremia, queria gritar ou desatar a correr e nunca mais voltar àquele escritório, mas precisava do emprego e do mísero ordenado que ele me proporcionava. Uma noite, Sanmartí começou com a sua rotina da massagem e principiou a apalpar-me com avidez.
– Um dia vais-me fazer perder a cabeça – gemia.
Escapei-me das suas garras de um salto e corri até à saída, arrastando o casaco e a mala. Sanmartí ria-se nas minhas costas. Na escada tropecei numa figura escura que parecia deslizar pelo vestíbulo sem roçar o chão.
– Bons olhos a vejam, senhora Moliner…
O inspector Fumero ofereceu-me o seu sorriso de réptil.
– Não me diga que trabalha para o meu bom amigo Sanmartí. Ele, como eu, é o melhor no seu ofício. E diga-me, como está o seu marido?
Soube que tinha os dias contados. No dia seguinte correu o rumor no escritório de que Nuria Monfort era «fressureira», visto que se mantinha imune aos encantos e ao hálito a alho de don Pedro Sanmartí, e que andava enrolada com Mercedes Prieto. Não foi uma nem duas jovens de futuro na empresa que garantiram ter visto aquele «par de porcas» a beijocar-se no arquivo em determinadas ocasiões. Nessa tarde, ao sair, a Mercedes perguntou-me se podíamos falar um momento. Mal me conseguia olhar nos olhos. Fomos ao café da esquina
sem trocar palavra. Ali, a Mercedes contou-me que Sanmartí lhe tinha dito que não via com bons olhos a nossa amizade, que a polícia lhe tinha dado informações sobre mim, sobre o meu suposto passado de activista comunista.
– Nuria, eu não posso perder este emprego. Preciso dele para criar o meu filho…
Abateu-se entre lágrimas, consumida pela vergonha e pela humilhação, envelhecendo a cada segundo.
– Não te preocupes, Mercedes. Eu percebo – disse eu.
– Aquele homem, o Fumero, anda atrás de ti, Nuria. Não sei o que tem ele contra ti, mas vê-se-lhe na cara…
– Bem sei.
Na segunda-feira seguinte, quando cheguei ao escritório, encontrei-me com um indivíduo enxuto e engomado a ocupar a minha secretária. Apresentou-se como Salvador Benades, o novo revisor.
– E quem é o senhor?
Nem uma única pessoa em todo o escritório se atreveu a trocar um olhar ou a palavra comigo enquanto eu juntava as minhas coisas. Ao descer pela escada, a Mercedes correu atrás de mim e entregou-me um envelope que continha um maço de notas e moedas.
– Quase todos contribuíram com o que puderam. Aceita-o, por favor. Não por ti, por nós.
Nessa noite fui ao andar da Ronda de San António. O Julián esperava-me como sempre, sentado na escuridão. Tinha escrito um poema para mim, disse. Era o primeiro que escrevia em nove anos. Quis lê-lo, mas fui-me abaixo nos seus braços. Contei-lhe tudo, porque já não podia mais. Porque receava que o Fumero, mais tarde ou mais cedo, o encontrasse. O Julián ouviu-me em silêncio, segurando-me nos braços e acariciando-me o cabelo. Era a primeira vez em anos que sentia que, por uma vez, me podia apoiar nele. Quis beijá-lo, doente de solidão, mas o Julián não tinha lábios nem pele para me oferecer. Adormeci nos seus braços, encolhida na cama do quarto dele, uma caminha de rapaz. Quando acordei, o Julián não estava lá. Ouvi os seus passos no terraço ao alvorecer e fingi estar ainda a dormir. Mais tarde, nessa manhã, ouvi a notícia no rádio sem me aperceber. Tinha sido encontrado um corpo num banco no Paseo del Borne, contemplando a basílica de Santa Maria del Mar, sentado com as mãos cruzadas sobre o regaço. Um bando de pombas que lhe debicavam os olhos chamou a atenção de um vizinho, que alertou a polícia. O cadáver tinha o pescoço partido. A senhora Sanmartí identificou-o como o seu marido,
Pedro Sanmartí Monegal. Quando o sogro do falecido recebeu a notícia no seu asilo de Banolas, deu graças aos céus e disse para consigo que agora podia morrer em paz.
13.
O Julián escreveu uma vez que os acasos são as cicatrizes do destino. Não há acasos, Daniel. Somos títeres da nossa inconsciência. Durante anos tinha querido acreditar que o Julián continuava a ser o homem por quem me tinha apaixonado, ou as suas cinzas. Tinha querido acreditar que iríamos avante com sopros de miséria e de esperança. Tinha querido acreditar que Laín Coubert morrera e regressara às páginas de um livro. As pessoas estão dispostas a acreditar no que quer que seja em vez da verdade.
O assassínio de Sanmartí abriu-me os olhos. Compreendi que Laín Coubert continuava vivo e a mexer. Mais do que nunca. Hospedava-se no corpo fanado pelas chamas daquele homem do qual nem a voz restava e se alimentava da sua memória. Descobri que ele tinha encontrado a maneira de entrar e sair do andar da Ronda de San António através de uma janela que dava para a clarabóia central sem necessidade de forçar a porta que eu fechava todas as vezes que de lá saía. Descobri que Laín Coubert, disfarçado de Julián, tinha andado a percorrer a cidade, visitando o casarão dos Aldaya. Descobri que na sua loucura regressara àquela cripta e quebrara as lápides, que tinha extraído os sarcófagos da Penélope e do filho. «Que fizeste tu, Julián?”
A polícia esperava-me em casa para me interrogar sobre a morte do editor Sanmartí. Conduziram-me à esquadra, onde depois de cinco horas de espera num gabinete às escuras, o Fumero compareceu vestido de preto e me ofereceu um cigarro.
– A senhora e eu podíamos ser bons amigos, senhora Moliner. Dizem-me os meus homens que o seu marido não está em casa.
– O meu marido deixou-me. Não sei onde está.
Atirou-me da cadeira abaixo com uma bofetada brutal. Arrastei-me até um canto, presa de pânico. Não me atrevi a levantar a vista. O Fumero ajoelhou-se ao meu lado e agarrou-me pelos cabelos.
– Toma bem nota, galdéria de merda: eu vou encontrá-lo e, quando isso acontecer, matar-vos-ei aos dois. A ti primeiro, para que ele te veja com as tripas ao dependuro. E depois a ele, quando lhe tiver contado que a outra rameira que ele mandou para a cova era irmã dele.
– Primeiro matar-te-á ele a ti, filho da puta.
O Fumero cuspiu-me na cara e soltou-me. Julguei então que ia dar cabo de mim à pancada, mas ouvi os seus passos a afastarem-se pelo corredor. Tremendo, pus-me de pé e limpei o sangue da cara. Conseguia sentir o cheiro da mão daquele homem na pele, mas desta vez reconheci o fedor do medo.
Retiveram-me naquele quarto, às escuras e sem água, durante seis horas. Quando me soltaram já era de noite. Chovia a cântaros e as ruas ardiam de vapor. Ao chegar a casa deparei com um mar de escombros. Os homens do Fumero tinham estado ali. Entre móveis caídos, gavetas e estantes derrubadas, encontrei a minha roupa feita em farrapos e os livros do Miquel desfeitos. Em cima da minha cama encontrei uma pilha de fezes e sobre a parede, escrito com excrementos, lia-se «Puta».
Corri ao andar da Ronda de San António, fazendo mil desvios e certificando-me de que nenhum dos esbirros do Fumero me tinha seguido até à porta da rua Joaquín Costa. Atravessei os telhados alagados de chuva e verifiquei que a porta do andar continuava fechada. Entrei discretamente, mas os ecos dos meus passos denunciava a ausência. O Julián não estava lá. Esperei-o sentada na sala de jantar escura, a ouvir a tempestade, até ao alvorecer. Quando a bruma do amanhecer lambeu os postigos da varanda, subi ao terraço e contemplei a cidade esmagada sob céus de chumbo. Soube que o Julián não voltaria ali. Já o tinha perdido para sempre.
Voltei a vê-lo dois meses depois. Tinha-me enfiado num cinema à noite, sozinha, incapaz de voltar ao andar vazio e frio. A meio do filme, uma estupidez de amoricos entre uma princesa romena desejosa de aventura e um bem-parecido repórter norte-americano imune ao esguedelhamento, sentou-se um indivíduo ao meu lado. Não era a primeira vez. Os cinemas daquela época andavam enxameados de fantoches que tresandavam a solidão, urina e água-de-colónia, brandindo as suas mãos suarentas e trémulas como línguas de carne morta. Dispunha-me a levantar-me e avisar o arrumador quando reconheci o perfil fanado do Julián. Aferrou-me a mão com força e permanecemos assim, a olhar o ecrã sem o ver.
– Foste tu que mataste o Sanmartí? – murmurei.
– Alguém sente a falta dele?
Falávamos em sussurros, sob o olhar atento dos homens solitários semeados pela plateia que se roíam de inveja ante o aparente êxito daquele sombrio competidor. Perguntei-lhe onde tinha andado a esconder-se, mas não me respondeu.
– Existe outro exemplar de A Sombra do Vento – murmurou. – Aqui, em Barcelona.
– Estás enganado, Julián. Destruíste-os todos.
– Todos menos um. Ao que parece, alguém mais astuto do que eu o escondeu num lugar onde nunca o poderia encontrar. Tu.
Foi assim que ouvi falar pela primeira vez de ti. Um livreiro fanfarrão e desbocado chamado Gustavo Barceló tinha estado a gabar-se diante de alguns coleccionadores de ter localizado um exemplar de A Sombra do Vento. O mundo dos livros de alfarrabista é uma câmara de eco. Num par de meses apenas, o Barceló estava a receber ofertas de coleccionadores de Berlim, Paris e Roma para adquirirem o livro. A enigmática fuga do Julián de Paris após um sangrento duelo e a sua propalada morte na guerra civil espanhola tinham conferido às suas obras um valor de mercado com que nunca teriam podido sonhar. A lenda negra de um indivíduo sem rosto que percorria livrarias, bibliotecas e colecções privadas para as queimar só contribuía para multiplicar o interesse e a cotação. «Temos o circo no sangue», dizia Barceló.
O Julián, que continuava a perseguir a sombra das suas próprias palavras, não tardou a ouvir o rumor. Soube assim que Gustavo Barceló não tinha o livro, mas que, segundo parecia, o exemplar era propriedade de um rapaz que o descobrira por acidente e que, fascinado pelo romance e pelo seu enigmático autor, se negava a vendê-lo e o conservava como a sua mais apreciada possessão. Esse rapaz eras tu, Daniel.
– Pelo amor de Deus, Julián, não vais fazer mal a uma criança… – murmurei, não muito segura.
O Julián disse-me então que todos os livros que tinha roubado e destruído haviam sido arrebatados das mãos de quem não sentia nada por eles, de gente que se limitava a comerciar com eles ou que os mantinha como curiosidades de coleccionadores e diletantes bafientos. Tu, que te negavas a vender o livro fosse a que preço fosse e tentavas recuperar Carax dos recantos do passado, inspiravas-lhe uma estranha simpatia, e até respeito. Sem que o soubesses, o Julián observava-te e estudava-te.
– Talvez, se vier a averiguar quem eu sou e o que sou, também ele decida queimar o livro.
O Julián falava com aquela lucidez firme e taxativa dos loucos que se livraram da hipocrisia de se aterem a uma realidade que não encaixa.
– Quem é esse rapaz?
– Chama-se Daniel. E filho dum livreiro que o Miquel costumava frequentar na Rua Santa Ana. Vive com o pai num andar por cima da loja. Perdeu a mãe em muito pequeno.
– Até parece que estás a falar de ti.
– Se calhar. Esse rapaz lembra-me eu próprio.
– Deixa-o em paz, Julián. É apenas uma criança. O seu único crime foi admirar-te.
– Isso não é um crime, é uma ingenuidade. Mas há-de passar-lhe. Talvez então me devolva o livro. Quando deixar de me admirar e começar a compreender-me.
Um minuto antes do desenlace, o Julián levantou-se e afastou-se ao abrigo das sombras. Durante meses vimo-nos sempre assim, às escuras, em cinemas e vielas à meia-noite. O Julián encontrava-me sempre. Eu sentia a sua presença silenciosa sem o ver, sempre vigilante. Às vezes mencionava-te e, ao ouvi-lo falar de ti, parecia-me detectar na sua voz uma estranha ternura que o confundia e que havia muitos anos julgava perdida nele. Soube que tinha regressado ao casarão dos Aldaya e que agora vivia lá, a meio caminho entre espectro e mendigo, percorrendo a ruína da sua vida e velando os restos da Penélope e do filho de ambos. Aquele era o único sítio no mundo que ainda sentia seu. Há piores prisões que as palavras.
Eu ia lá uma vez por mês, para me certificar de que ele estava bem, ou simplesmente vivo. Saltava a sebe meio derrubada da parte de trás, invisível da rua. Às vezes encontrava-o ali, outras vezes Julián tinha desaparecido. Deixava-lhe comida, dinheiro, livros… Esperava-o durante horas, até ao anoitecer. Em certas ocasiões atrevia-me a explorar o casarão. Foi assim que averiguei que ele tinha quebrado as lápides da cripta e extraído os sarcófagos. Já não julgava que o Julián estivesse louco, nem via monstruosidade naquela profanação, mas tão-só uma trágica coerência. Nas vezes que o encontrava lá falávamos durante horas, sentados ao pé do fogo. O Julián confessou-me que tinha tentado voltar a escrever, mas que não era capaz. Lembrava-se vagamente dos seus livros como se os tivesse lido, como se fossem obra de outra pessoa. As cicatrizes da sua tentativa estavam à vista. Descobri que o Julián confiava ao fogo páginas que escrevera febrilmente durante o tempo em que não nos tínhamos visto. Uma vez, aproveitando a sua ausência, recuperei um molho de folhas de entre as cinzas. Falava de ti. O Julián tinha-me dito certa vez que um relato era uma carta que o autor escreve a si próprio para contar coisas a si mesmo que de outro modo não poderia averiguar. Havia tempo que o Julián perguntava a si mesmo se tinha perdido a razão. Saberá o louco que está louco? Ou os loucos são os outros, que se empenham em convencê-lo da sua insanidade para salvaguardarem a sua existência de quimeras? O Julián observava-te, via-te crescer e perguntava a si mesmo quem eras. Perguntava a si mesmo se porventura a tua presença não seria senão um milagre, um perdão que tinha de conquistar ensinando-te a não cometeres os seus próprios erros. Em mais de uma ocasião interroguei-me sobre se o Julián não teria acabado por se convencer de que tu, naquela lógica tortuosa do seu universo, te tinhas transformado no filho que ele perdera, numa nova página em branco para voltar a começar aquela história que não podia inventar, mas que não podia recordar.
Passaram aqueles anos no casarão e o Julián vivia cada vez mais suspenso de ti, dos teus progressos. Falava-me dos teus amigos, de uma mulher chamada Clara
pela qual te tinhas apaixonado, do teu pai, um homem que ele admirava e apreciava, do teu amigo Fermín e de uma rapariga em que ele quis ver outra Penélope, a tua Bea. Falava de ti como de um filho. Vocês procuravam-se um ao outro, Daniel. Ele queria crer que a tua inocência o salvaria de si mesmo. Deixara de perseguir os seus livros, de ter vontade de queimar e destruir o seu rasto na vida. Estava a aprender a voltar a memorizar o mundo através dos teus olhos, de recuperar o rapaz que tinha sido em ti. No dia em que foste lá a casa pela primeira vez senti que já te conhecia. Fingi receio para ocultar o temor que me inspiravas. Tinha medo de ti, do que poderias averiguar. Tinha medo de ouvir o Julián e começar a acreditar como ele que todos estávamos realmente ligados numa estranha cadeia de destinos e acasos. Tinha medo de reconhecer o Julián que perdera em ti. Sabia que tu e os teus amigos estavam a fazer investigações sobre o nosso passado. Sabia que mais tarde ou mais cedo descobririas a verdade, mas a seu devido tempo, quando pudesses vir a compreender o seu significado. Sabia que mais tarde ou mais cedo tu e o Julián se encontrariam. Foi esse o meu erro. Porque havia mais alguém que o sabia, alguém que pressentia que, com o tempo, tu o conduzirias ao Julián: o Fumero. Compreendi o que estava a acontecer quando já não havia retorno, mas nunca perdi a esperança de que perdesses o rasto, de que te esquecesses de nós ou de que a vida, a tua e não a nossa, te levasse para longe, a salvo. O tempo ensinou-me a não perder as esperanças, mas a não confiar demasiado nelas. São cruéis e vaidosas, desprovidas de consciência. Há já muito tempo que o Fumero anda no meu encalço. Ele sabe que cairei, mais tarde ou mais cedo. Não tem pressa, e por isso parece incompreensível. Vive para se vingar. De todos e de si mesmo. Sem a vingança, sem a raiva, evaporar-se-ia. O Fumero sabe que tu e os teus amigos me levarão até ao Julián. Sabe que, depois de quase quinze anos, já não me restam forças nem recursos. Viu-me morrer durante anos e só espera o momento de me assestar o último golpe. Nunca duvidei de que morrerei às suas mãos. Agora sei que o momento se aproxima. Entregarei estas páginas ao meu pai com o encargo de tas fazer chegar se me acontecer alguma coisa. Peço a Deus, com quem nunca me cruzei, que nunca chegues a lê-las, mas pressinto que o meu destino, apesar da minha vontade e apesar das minhas vãs esperanças, é confiar-te esta história. O teu, apesar da tua juventude, é libertá-la.
Quando leres estas palavras, esta prisão de recordações, significará que já não poderei despedir-me de ti como quereria, que não te poderei pedir que nos perdoes, sobretudo ao Julián, e que cuides dele quando eu não estiver cá para o fazer. Sei que não te posso pedir nada, salvo que te salves. Talvez tantas páginas me tenham acabado por convencer de que, aconteça o que acontecer, terei sempre em ti um amigo, que tu és a minha única e verdadeira esperança. De todas as coisas que o Julián escreveu, aquela que sempre senti mais próxima é que enquanto nos recordam, continuamos vivos. Como tantas vezes me sucedeu com o Julián, anos antes de me encontrar com ele, sinto que te conheço e que, se posso confiar em alguém, é em ti. Lembra-te de mim, Daniel, mesmo que seja num canto e às escondidas. Não me deixes ir.
Nuria Monfort.
A Sombra do Vento – 1955
1
Amanhecia já quando acabei de ler o manuscrito de Nuria Monfort. Aquela era a minha história. A nossa história. Nos passos perdidos de Carax reconhecia agora os meus, já irrecuperáveis. Levantei-me, devorado pela ansiedade, e comecei a percorrer o quarto como um animal enjaulado. Todos os meus escrúpulos, os meus receios e temores se desfaziam agora em cinzas, insignificantes. A fadiga, o remorso e o medo venciam-me, mas senti-me incapaz de permanecer ali, a esconder-me do rasto das minhas acções. Envolvi-me no sobretudo, meti o manuscrito dobrado no bolso interior e corri pelas escadas abaixo. Tinha começado a nevar quando saí a porta da rua e o céu desfazia-se em lágrimas preguiçosas de luz que assentavam no bafo e desapareciam. Corri em direcção à Praça Cataluna, deserta. No centro da praça, solitário, erguia-se a silhueta de um velho, ou talvez fosse um anjo desertor, encimada por uma cabeleira branca e enfiado num formidável sobretudo cinzento. Rei do alvorecer, erguia o olhar ao céu e tentava em vão apanhar flocos de neve com as luvas, rindo-se. Ao passar ao lado dele olhou-me e sorriu com gravidade, como se pudesse ler-me a alma numa olhadela. Tinha os olhos dourados como moedas enfeitiçadas no fundo de um lago.
– Felicidades – pareceu-me ouvi-lo dizer.
Tentei agarrar-me àquela bênção e apertei o passo, rezando para que não fosse tarde de mais e que Bea, a Bea da minha história, ainda estivesse à minha espera.
Ardia-me a garganta de frio quando cheguei ao edifício onde os Aguilar viviam, ofegando após a corrida. A neve começava a coagular. Tive a sorte de encontrar don Saturno Molleda, porteiro do edifício e (segundo Bea me tinha contado) poeta surrealista às escondidas, postado à entrada. Don Saturno tinha saído para contemplar o espectáculo da neve de vassoura na mão, embrulhado em nada menos que três cachecóis e botas de assalto.
– É a caspa de Deus – disse, maravilhado, estreando o nevão de versos inéditos.
– Vou a casa dos senhores Aguilar – anunciei.
– É sabido que a quem madruga Deus ajuda, mas estas suas horas são como pedir-lhe uma bolsa de estudo, jovem.
– Trata-se de uma emergência. Estão à minha espera.
– Ego te absolvo – recitou, concedendo-me uma bênção.
Corri pelas escadas acima. Enquanto subia, contemplava as minhas possibilidades com uma certa reserva. Com sorte, viria abrir-me uma das criadas, cujo bloqueio me dispunha a franquear sem contemplações. Com pior sorte, talvez fosse o pai de Bea quem me abrisse a porta, dadas as horas. Quis acreditar que na intimidade do seu lar não andaria armado, pelo menos antes do pequeno-almoço. Antes de bater, parei uns instantes para recuperar o fôlego e tentar conjurar umas palavras que não me vieram. Já pouco importava. Bati a aldraba três vezes com força. Quinze segundos depois repeti a operação, e assim sucessivamente, ignorando o suor frio que me cobria a testa e as batidas do meu coração. Quando a porta se abriu, ainda segurava a aldraba nas mãos.
– Que queres?
Os olhos do meu velho amigo Tomás perfuraram-me, sem sobressalto. Frios e supurante de ira.
– Venho ver a Bea. Podes partir-me a cara, se quiseres, mas não vou daqui sem falar com ela.
Tomás observava-me sem pestanejar. Perguntei a mim mesmo se me ia partir em dois ali mesmo, sem contemplações. Engoli em seco.
– A minha irmã não está.
– Tomás…
– A Bea foi-se embora.
Havia abandono e mágoa na sua voz, que a custo conseguia mascarar de raiva.
– Foi-se embora? Para onde?
– Esperava que tu soubesses.
– Eu?
Ignorando os punhos cerrados e o semblante ameaçador de Tomás, introduzi-me no interior do andar.
– Bea? – gritei. – Bea, sou o Daniel…
Parei a meio do corredor. O andar cuspia o eco da minha voz com aquele desprezo dos espaços vazios. Nem o senhor Aguilar, nem a mulher, nem a criadagem apareceram em resposta aos meus bramidos.
– Não está cá ninguém. Já te disse – declarou Tomás à minha retaguarda. – Agora põe-te a andar e não voltes. O meu pai jurou que te matava e não vou ser eu quem o impeça.
– Pelo amor de Deus, Tomás. Diz-me onde está a tua irmã. Contemplava-me como quem não sabe se cuspir ou passar de largo.
– A Bea foi-se embora de casa, Daniel. Os meus pais andam há dois dias à procura dela por todo o lado como doidos e a polícia também.
– Mas…
– Na outra noite, quando voltou de te ver, o meu pai estava à espera dela. Abriu-lhe os lábios à bofetada, mas não te preocupes, que se negou a dar o teu nome. Tu não a mereces.
– Tomás…
– Cala-te. No dia seguinte, os meus pais levaram-na ao médico.
– Porquê? A Bea está doente?
– Doente de ti, imbecil. A minha irmã está grávida. Não me digas que não sabias.
Senti que me tremiam os lábios. Um frio intenso espalhava-se-me pelo corpo, a voz sumida, o olhar aprisionado. Arrastei-me até à saída, mas Tomás agarrou-me pelo braço e arremessou-me contra a parede.
– Que foi que lhe fizeste?
– Tomás, eu…
Descaíram-lhe as pálpebras de impaciência. O primeiro golpe cortou-me a respiração. Resvalei até ao chão com as costas apoiadas contra a parede, os joelhos a fraquejar. Um aperto terrível aferrou-me a garganta e susteve-me de pé, espetado contra a parede.
– Que foi que lhe fizeste, filho da puta?
Tentei libertar-me do aperto, mas Tomás lançou-me por terra com um murro na cara. Caí numa escuridão interminável, com a cabeça envolvida em labaredas de dor. Abati-me sobre as lajes do corredor. Procurei rastejar, mas Tomás agarrou-me pela gola do sobretudo e arrastou-me sem contemplações até ao patamar. Atirou-me para as escadas como um despojo.
– Se aconteceu alguma coisa à Bea, juro que te mato – disse do umbral da porta.
Ergui-me de joelhos, implorando um segundo, uma oportunidade de recuperar a voz. A porta fechou-se abandonando-me na escuridão. Assaltou-me uma pontada no ouvido esquerdo e levei a mão à cabeça, retorcendo-me de dor. Apalpei sangue morno. Pus-me de pé conforme pude. Os músculos do ventre que tinham encaixado o primeiro golpe de Tomás ardiam numa agonia que só agora principiava. Deslizei pelas escadas abaixo, onde don Saturno, ao ver-me, abanou a cabeça.
– Eh lá, entre um momento e recomponha-se…
Fiz um gesto de recusa, agarrando o estômago com as mãos. Latejava-me o lado esquerdo da cabeça, como se os ossos quisessem desprender-se da carne.
– Está a sangrar – disse don Saturno, inquieto.
– Não é a primeira vez.
– Então continue a brincar e não terá oportunidade de sangrar muito mais. Vamos, entre e eu chamo um médico, faça-me o favor.
Consegui chegar à porta da rua e livrar-me da boa vontade do porteiro. Agora nevava com força, velando o passeio com mantos de bruma branca. O vento gelado abria caminho pelo meio da minha roupa, lambendo a ferida que me sangrava na cara. Não sei se chorei de dor, de raiva ou de medo. A neve, indiferente, levou o meu pranto cobarde e afastei-me lentamente no alvorecer de poeira, uma sombra mais a abrir sulcos na caspa de Deus.
2
Quando me aproximava do cruzamento da Rua Balmes reparei que um carro me estava a seguir, bordejando o passeio. A dor de cabeça tinha dado lugar a uma sensação de vertigem que me fazia cambalear e caminhar apoiando-me nas paredes. O carro parou e dois homens apearam-se dele. Um apito estridente tinha-me inundado os ouvidos e não consegui ouvir o motor, nem os apelos daquelas duas silhuetas de preto que me seguravam cada uma de seu lado e me arrastavam com urgência para o carro. Caí no banco de trás, embriagado de náusea. A luz ia e vinha, como uma maré de claridade ofuscante. Senti que o carro se movia. Umas mãos apalpavam-me o rosto, a cabeça e as costelas. Ao dar com o manuscrito de Nuria Monfort oculto no interior do meu sobretudo, uma das figuras arrebatou-mo. Quis detê-lo com braços de gelatina. A outra silhueta debruçou-se sobre mim. Soube que estava a falar comigo ao sentir o seu hálito na cara. Esperei ver o rosto de Fumero e sentir o gume da sua faca na garganta. Um olhar poisou sobre o meu e, enquanto o véu da consciência se soltava, reconheci o sorriso desdentado e obsequioso de Fermín Romero de Torres.
Acordei encharcado num suor que me ardia na pele. Duas mãos seguravam-me com firmeza pelos ombros, acomodando-me sobre um catre que me pareceu rodeado de círios, como num velório. O rosto de Fermín assomou à minha direita. Sorria, mas até em pleno delírio pude perceber a sua inquietude. Ao seu lado, de pé, distingui don Federico Flaviá, o relojoeiro.
– Parece que está a voltar a si, Fermín – disse don Federico. – Acha bem que lhe prepare um pouco de caldo para o reanimar?
– Mal não lhe há-de fazer. Já que está com as mãos na massa, o senhor podia preparar-me uma sanduíche do que encontre, que com estes nervos veio-me uma larica que não lhe digo nada.
Federico retirou-se com louçania e deixou-nos a sós.
– Onde estamos, Fermín?
– Em lugar seguro. Tecnicamente, achamo-nos num andarzinho à esquerda do Ensanche, propriedade de umas amizades de don Federico, ao qual devemos a vida e não só. Os maldizentes qualificá-lo-iam de casa de encontros, mas para nós é um santuário.
Procurei pôr-me de pé. A dor no ouvido fazia-se sentir agora num latejar ardente.
– Vou ficar surdo?
– Surdo, não sei, mas por pouco não ficou meio mongolóide. Esse energúmeno do senhor Aguilar por pouco não lhe liquefez as meninges à porrada.
– Não foi o senhor Aguilar que me bateu. Foi o Tomás.
– O Tomás? O seu amigo inventor? Assenti.
– Alguma coisa o Daniel terá feito.
– A Bea fugiu de casa… – comecei. Fermín franziu o cenho.
– Continue.
– Está grávida.
Fermín observava-me, pasmado. Por uma vez, a sua expressão era impenetrável e severa.
– Não me olhe assim, Fermín, por Deus.
– Que quer que faça? Distribuir charutos?
Tentei levantar-me, mas a dor e as mãos de Fermín detiveram-me.
– Tenho de a encontrar, Fermín.
– Quietinho. O Daniel não está em condições de ir a lado nenhum. Diga-me onde está a rapariga e eu irei à procura dela.
– Não sei onde está.
– Vou-lhe pedir que seja um pouco mais específico.
Don Federico apareceu pela porta trazendo uma taça fumegante de caldo. Sorriu-me calidamente.
– Como te sentes, Daniel?
– Muito melhor, obrigado, don Federico.
– Toma um par destas pastilhas com o caldo. Cruzou um olhar leve com Fermín, que assentiu.
– São para as dores.
Engoli as pastilhas e sorvi a taça de caldo, que sabia a xerez. Don Federico, um prodígio de discrição, abandonou o quarto e fechou a porta. Foi então que reparei que Fermín tinha no regaço o manuscrito de Nuria Monfort. O relógio que tilintava na mesa-de-cabeceira marcava a uma, supus que da tarde.
– Ainda neva?
– Nevar é pouco. Isto é um dilúvio em pó.
– Já o leu? – perguntei. Fermín limitou-se a assentir.
– Tenho de encontrar a Bea antes que seja tarde. Acho que sei onde ela está. Sentei-me na cama, afastando os braços de Fermín. Olhei à minha volta.
As paredes ondulavam como algas sob um lago. O tecto distanciava-se num ápice. Mal me consegui ter de pé. Fermín, sem esforço, devolveu-me de novo ao catre.
– O Daniel não vai a sítio nenhum.
– O que eram aquelas pastilhas?
– O linimento de Morfeu. O Daniel vai dormir como uma pedra.
– Não, agora não posso…
Continuei a balbuciar até que as pálpebras, e o mundo, se me abateram sem apelo nem agravo. Foi um sono negro e vazio, de túnel. O sono dos culpados.
O crepúsculo espreitava quando a laje daquele letargo se evaporou e abri os olhos a um quarto escuro e velado por dois círios cansados que pestanejavam na mesa-de-cabeceira. Fermín, desbaratado sobre a poltrona do canto, ressonava com a fúria de um homem três vezes maior. Aos seus pés, esparramado num pranto de páginas, jazia o manuscrito de Nuria Monfort. A dor de cabeça tinha-se reduzido a um latejar lento e morno. Deslizei com discrição até à porta do quarto e saí para uma pequena sala com uma varanda e uma porta que parecia dar para a escada. O meu sobretudo e os meus sapatos repousavam sobre uma cadeira. Uma luz púrpura penetrava pela janela, mosqueada de reflexos irisados. Aproximei-me até à varanda e vi que continuava a nevar. Os telhados de meia Barcelona vislumbravam-se sarapintados de branco e escarlate. Ao longe distinguiam-se as torres da escola industrial, agulhas entre a bruma acesa nos últimos suspiros do sol. O vidro estava embaciado de geada. Poisei o indicador no vidro e escrevi:
Vou à procura da Bea. Não me siga. Voltarei em breve.
A certeza tinha-me assaltado ao acordar, como se um desconhecido me tivesse sussurrado a verdade em sonhos. Saí para o patamar e lancei-me pelas escadas abaixo até sair a porta da rua. A Rua Urgel era um rio de areia reluzente do qual emergiam candeeiros e árvores, mastros num nevoeiro sólido. O vento cuspia a neve às rajadas. Caminhei até ao metro do Hospital Clínico e mergulhei nos túneis de vapor e calor em segunda mão. Hordas de barceloneses, que costumavam confundir a neve com os milagres, continuavam a comentar o insólito do temporal. Os jornais da tarde traziam a notícia na primeira página, com uma fotografia das Ramblas nevadas e da fonte de Canaletas a sangrar estalactites. «O NEVÃO DO SÉCULO», prometiam os cabeçalhos. Deixei-me cair num banco da plataforma e aspirei aquele perfume a túneis e fuligem que o rumor das composições invisíveis traz. Do outro lado das vias, num cartaz publicitário, proclamando as delícias do parque de atracções do Tibidabo, aparecia o eléctrico azul iluminado como uma verbena, e atrás dele adivinhava-se a silhueta do casarão dos Aldaya. Perguntei a mim mesmo se Bea, perdida naquela Barcelona dos que caíram do mundo, teria visto a mesma imagem e compreendido que não tinha outro sítio para onde ir.
3
Começava a anoitecer quando emergi das escadarias do metro. Deserta, a Avenida del Tibidabo desenhava uma fuga infinita de ciprestes e palácios sepultados numa claridade sepulcral. Vislumbrei a silhueta do eléctrico azul na paragem, com a campainha do revisor a decepar o vento. Apressei-me e apanhei-o quase ao mesmo tempo que ele iniciava o seu trajecto. O revisor, velho conhecido, aceitou as moedas murmurando de si para si. Procurei lugar no interior da cabina, um pouco mais resguardado da neve e do frio. Os casarões sombrios desfilavam lentamente por detrás dos vidros velados de gelo. O revisor observava-me com aquele misto de receio e ousadia que o frio parecia ter-lhe congelado no rosto.
– O número trinta e dois, jovem.
Voltei-me e vi a silhueta espectral do casarão dos Aldaya, avançando em direcção a nós como a proa de um navio escuro no nevoeiro. O eléctrico parou com uma sacudidela. Desci, fugindo do olhar do revisor.
– Felicidades – murmurou ele.
Contemplei o eléctrico a perder-se avenida acima até só se perceber o eco da campainha. Uma penumbra sólida desabou à minha volta. Apressei-me a contornar a vedação em busca da brecha caída na parte posterior. Ao escalar o muro pareceu-me ouvir passos sobre a neve no passeio oposto, a aproximarem-se. Parei um instante, imóvel no cimo do muro. A noite caía já, inexorável. O rumor de passos extinguiu-se no rasto do vento. Saltei para o outro lado e penetrei no jardim. As ervas daninhas tinham congelado em talos de vidro. As estátuas dos anjos derrubados jaziam cobertas por sudários de gelo. A superfície da fonte tinha congelado num espelho negro e reluzente do qual só emergia a garra de pedra do anjo
submergido como um sabre de obsidiana. Lágrimas de gelo pendiam do dedo indicador. A mão acusadora do anjo apontava directamente para o portão principal, entreaberto.
Subi os degraus com a esperança de que não fosse demasiado tarde. Não me preocupei a amortecer o eco dos meus passos. Empurrei o portão e entrei no vestíbulo. Uma procissão de círios penetrava até ao interior. Eram as velas de Bea, quase consumidas até ao chão. Segui o seu rasto e detive-me aos pés da escadaria. O carreiro de velas subia pelos degraus até ao primeiro andar. Aventurei-me escada acima, seguindo a minha sombra deformada sobre as paredes. Ao chegar ao patamar do primeiro andar verifiquei que havia mais duas velas que se internavam no corredor. A terceira tremulava defronte daquele que tinha sido o quarto de Penélope. Aproximei-me e bati suavemente com os nós dos dedos na porta.
– Julián? – chegou-me a voz trémula.
Agarrei na maçaneta da porta e dispus-me a entrar, sem saber já quem me esperava do outro lado. Abri lentamente. Bea contemplava-me do canto, embrulhada num cobertor. Corri para o seu lado e abracei-a em silêncio. Senti que se desfazia em lágrimas.
– Não sabia para onde ir. Telefonei-te várias vezes para casa, mas não estava ninguém. Assustei-me…
Bea enxugou as lágrimas com os punhos e cravou o olhar em mim. Assenti, e não foi preciso que dissesse mais.
– Por que foi que me chamaste, Julián?
Bea lançou um olhar na direcção da porta entreaberta.
– Ele está aqui. Nesta casa. Entra e sai. Surpreendeu-me no outro dia, quando tentava entrar na casa. Sem que lhe dissesse nada, soube quem era. Soube o que estava a acontecer. Instalou-me neste quarto e trouxe-me um cobertor, água e comida. Disse-me que esperasse. Que tudo havia de correr bem. Disse-me que tu virias à minha procura. À noite falámos durante horas. Falou-me da Penélope, da Nuria… sobretudo falou-me de ti, de nós os dois. Disse-me que tinha de te ensinar a esquecê-lo…
– Onde está ele agora?
– Lá em baixo. Na biblioteca. Disse-me que estava à espera de alguém, que não me mexesse daqui.
– À espera de quem?
– Não sei. Disse que era alguém que viria contigo, que tu o trarias… Quando assomei ao corredor, as passadas já se ouviam aos pés da escada.
Reconheci a sombra dessangrada nas paredes como uma teia de aranha, a gabardina preta, o chapéu enterrado na cabeça como um capuz e o revólver na mão reluzente como uma foice. Fumero. Sempre me tinha lembrado alguém, ou alguma coisa, mas até àquele instante eu não percebera o quê.
4.
Extingui as velas com os dedos e fiz um sinal a Bea para que guardasse silêncio. Ela agarrou-me na mão e olhou-me inquisitivamente. Os passos lentos de Fumero ouviam-se aos nossos pés. Conduzi Bea de novo ao interior do quarto e indiquei-lhe que permanecesse ali oculta atrás da porta.
– Não saias daqui, aconteça o que acontecer – sussurrei.
– Não me deixes agora, Daniel. Por favor.
– Tenho de avisar o Carax.
Bea implorou-me com o olhar, mas eu retirei-me para o corredor antes de me render. Deslizei até ao umbral da escadaria principal. Não havia rasto da sombra de Fumero, nem dos seus passos. Tinha parado em algum ponto da escuridão, imóvel. Paciente. Recuei de novo para o corredor e contornei a galeria de quartos até à fachada principal do casarão. Um janelão embaciado de gelo destilava quatro feixes azuis, turvos como água estagnada. Aproximei-me da janela e pude ver um carro preto postado em frente do gradeamento principal. Reconheci o automóvel do tenente Palácios. Uma brasa de cigarro na escuridão denunciava a sua presença atrás do volante. Regressei lentamente até à escadaria e desci degrau a degrau, poisando os pés com infinita cautela. Parei a meio do trajecto e perscrutei as trevas que inundavam o andar térreo.
Fumero tinha deixado o portão principal aberto à sua passagem. O vento apagara as velas e cuspia remoinhos de neve. A folhagem gelada dançava na abóbada, flutuando no túnel de claridade poeirenta que insinuava as ruínas do casarão. Desci mais quatro degraus, apoiando-me na parede. Captei um vislumbre da porta de vidros da biblioteca. Continuava sem detectar Fumero. Perguntei a mim mesmo se teria descido à cave ou à cripta. O pó de neve que penetrava do exterior estava a dissipar-lhe as pegadas. Deslizei até aos pés da escadaria e lancei uma olhadela ao corredor que conduzia à entrada. O vento gelado cuspiu-me na cara. A garra do anjo mergulhado na fonte entrevia-se nas trevas. Olhei na outra direcção. A entrada da biblioteca ficava a uma dezena de metros dos pés da escadaria. A antecâmara que conduzia até lá ficava velada de escuridão. Compreendi que Fumero podia estar a observar a uns metros apenas do ponto em que eu me encontrava, sem que eu pudesse vê-lo. Perscrutei a sombra, impenetrável como as águas de um poço. Respirei fundo e, quase arrastando os pés, cruzei às cegas a distância que me separava da entrada da biblioteca.
O grande salão oval ficava submergido numa penúria de luz vaporosa, crivada de pontos de sombra projectados pela neve a abater-se gelatinosamente atrás dos janelões.
Um objecto emergia da parede a dois metros apenas à minha direita. Por um instante pareceu-me que se deslocava, mas era só o reflexo da lua sobre o gume. Uma faca, talvez uma navalha de dois gumes, estava cravada na parede. Trespassava um rectângulo de cartão ou papel. Aproximei-me até lá e reconheci a imagem apunhalada sobre a parede. Era uma cópia idêntica da fotografia meio queimada que um estranho tinha abandonado no balcão da livraria. No retrato, Julián e Penélope, apenas uns adolescentes, sorriam a uma vida que se lhes tinha escapado sem o saberem. O fio da navalha atravessava o peito de Julián. Compreendi então que não tinha sido Laín Coubert, ou Julián Carax, quem tinha deixado aquela fotografia como um convite. Fora Fumero. A fotografia havia sido um isco envenenado. Levantei a mão para a arrebatar a faca, mas o contacto gelado do revólver de Fumero na nuca deteve-me.
– Uma imagem vale mais que mil palavras, Daniel. Se o teu pai não tivesse sido um livreiro de merda, já to teria ensinado.
Voltei-me lentamente e enfrentei o cano da arma. Tresandava a pólvora recente. O rosto cadavérico de Fumero sorria numa careta crispada de terror.
– Onde está o Carax?
– Longe daqui. Sabia que você viria à procura dele. Foi-se embora. Fumero observava-me sem pestanejar.
– Vou-te estoirar a cara em pedaços, miúdo.
– De pouco lhe servirá. O Carax não está aqui.
– Abre a boca – ordenou Fumero.
– Para quê?
– Abre a boca ou abro-ta eu com um tiro.
Descerrei os lábios. Fumero introduziu-me o revólver na boca. Senti um vómito a trepar-me pela garganta. O polegar de Fumero retesou-se no cão.
– Agora, desgraçado, pensa se tens alguma razão para continuar a viver. Que dizes?
Assenti lentamente.
– Então diz-me onde está o Carax.
Tentei balbuciar. Fumero afastou lentamente o revólver.
– Onde está?
– Lá em baixo. Na cripta.
– Tu guias-me. Quero que estejas presente quando eu contar a esse filho da puta como a Nuria Monfort gemia quando lhe enfiei a faca no…
A silhueta abriu caminho do nada. Espreitando por cima do ombro de Fumero julguei ver que a escuridão se remexia em cortinados de bruma e uma figura sem rosto, de olhar incandescente, deslizava direita a nós num silêncio absoluto, como se mal roçasse o solo. Fumero leu o reflexo nas minhas pupilas embaciadas de lágrimas e o seu rosto desfigurou-se devagar.
Quando se virou e disparou sobre o manto de negrume que o envolvia, duas garras de couro, sem linhas nem relevo, tinham-lhe atenazado a garganta. Eram as mãos de Julián Carax, crescidas das chamas. Carax afastou-me com um empurrão e esmagou Fumero contra a parede. O inspector aferrou o revólver e tentou colocá-lo debaixo do queixo de Carax. Antes que pudesse accionar o gatilho, Carax agarrou-o pelo pulso e martelou com força uma e outra vez contra a parede, sem conseguir que Fumero largasse o revólver. Um segundo disparo deflagrou na escuridão e estoirou contra a parede, abrindo uma brecha no painel de madeira. Lágrimas de pólvora inflamada e lascas em brasa salpicaram o rosto do inspector. O fedor a carne chamuscada inundou a sala.
Com uma sacudidela, Fumero tentou libertar-se daquelas mãos que lhe mantinham o pescoço imobilizado e a mão que segurava o revólver contra a parede. Carax não afrouxava o aperto. Fumero rugiu de raiva e virou a cabeça até morder o punho de Carax. Possuía-o uma fúria animal. Ouvi o estalido dos seus dentes a rasgar a pele morta e vi os lábios de Fumero a ressumar sangue. Carax, ignorando a dor, ou talvez incapaz de a sentir, agarrou então no punhal. Descravou-o da parede com um puxão e, perante o olhar aterrado de Fumero, trespassou o pulso direito do inspector contra a parede com um golpe brutal que cravou a lâmina no painel de madeira quase até ao cabo. Fumero deixou escapar um terrível bramido de agonia. A mão soltou-se com um espasmo e o revólver caiu aos seus pés. Carax cuspiu-o em direcção às sombras com um pontapé.
O horror daquela cena tinha desfilado diante dos meus olhos nuns segundos apenas. Sentia-me paralisado, incapaz de agir ou de articular um único pensamento. Carax virou-se na minha direcção e cravou o olhar em mim. Contemplando-o, consegui reconstituir as suas feições perdidas que tantas vezes tinha imaginado, ao ver retratos e ouvir velhas histórias.
– Leva a Beatriz daqui, Julián. Ela sabe o que devem fazer. Não te separes dela. Não deixes que ta arrebatem. Nada nem ninguém. Cuida dela. Mais do que da tua vida.
Quis assentir, mas os olhos desviaram-se-me para Fumero, que estava a debater-se com a faca que lhe atravessava o pulso. Arrancou-a com um puxão e abateu-se de joelhos, agarrando no braço ferido que lhe sangrava sobre o flanco.
– Vai – cochichou Carax.
Fumero contemplava-nos do solo, cego de ódio, segurando a faca ensanguentada na mão esquerda. Carax dirigiu-se para ele. Ouvimos uns passos apressados a aproximarem-se e compreendi que Palácios tinha acorrido em auxílio do seu chefe, alertado pelos disparos. Antes que Carax pudesse arrebatar a faca a Fumero, Palácios entrou na biblioteca com a arma em riste.
– Para trás – avisou.
Lançou um rápido olhar a Fumero, que se punha de pé com dificuldade, e depois observou-nos, primeiro a mim e depois a Carax. Percebi o horror e a dúvida naquele olhar.
– Para trás, disse eu.
Carax deteve-se e retrocedeu. Palácios observava-nos friamente, tentando dilucidar como resolver a situação. Os seus olhos poisaram sobre mim.
– Tu põe-te a andar. Isto não é contigo. Vamos. Hesitei um instante. Carax assentiu.
– Daqui ninguém sai – cortou Fumero. – Palácios, entregue-me o seu revólver.
Palácios permaneceu em silêncio.
– Palácios – repetiu Fumero, estendendo a mão totalmente velada de sangue em demanda da arma.
– Não – murmurou Palácios, apertando os dentes.
Os olhos enlouquecidos de Fumero encheram-se de desprezo e de fúria. Agarrou na arma de Palácios e empurrou-o com uma palmada. Cruzei o olhar com Palácios e soube o que ia suceder. Fumero ergueu lentamente a arma. Tremia-lhe a mão e o revólver brilhava, reluzente de sangue. Carax retrocedeu passo a passo, procurando a sombra, mas não havia escapatória. O cano do revólver seguia-o. Senti que os músculos do corpo se me incendiavam de raiva. A careta de morte de Fumero, que se lambia de loucura e rancor, despertou-me de chofre. Palácios olhava para mim, abanando a cabeça em silêncio. Ignorei-o. Carax tinha-se já abandonado, imóvel no centro da sala, à espera da bala.
Fumero não me chegou a ver. Para ele só existia Carax e aquela mão ensanguentada unida a um revólver. Arremessei-me sobre ele de um salto. Senti que os meus pés se erguiam do chão, mas nunca cheguei a recobrar o contacto. O mundo tinha-se congelado no ar. O estrondo do disparo chegou-me distante, como um eco de tempestade que se afasta. Não houve dor. O impacto do disparo atravessou-me as costelas. A primeira labareda foi cega, como se uma barra de metal me tivesse atingido com fúria indizível e me tivesse propulsionado no vazio um par de metros, até me lançar por terra. Não senti a queda, embora me parecesse que as paredes convergiam e o tecto descia a toda a velocidade como se ansiasse por me esmagar.
Uma mão segurou-me a nuca e vi o rosto de Julián Carax a inclinar-se sobre mim. Na minha visão, Carax aparecia exactamente como eu o tinha imaginado, como se as chamas nunca lhe tivessem arrancado o semblante. Distingui o horror no seu olhar, sem compreender. Vi que poisava a mão no meu peito e perguntei a mim mesmo o que era aquele líquido fumegante que brotava entre os seus dedos. Foi então que senti aquele fogo terrível, como um hálito de brasas a devorar-me as entranhas. Um grito quis escapar-me dos lábios,
mas aflorou afogado em sangue tépido. Reconheci o rosto de Palácios ao meu lado, derrotado de remorsos. Ergui o olhar e então vi-a. Bea avançava lentamente da porta da biblioteca, o rosto ungido de horror e as mãos trémulas sobre os lábios. Abanava a cabeça em silêncio. Quis adverti-la, mas um frio mordente percorria-me os braços e as pernas, abrindo caminho no meu corpo às facadas. Fumero espreitava oculto atrás da porta. Bea não reparou na sua presença. Quando Carax se pôs de pé de um salto e Bea se voltou, alertada, o revólver do inspector já lhe roçava a testa. Palácios lançou-se para o deter. Chegou tarde. Carax pairava já sobre ele. Ouvi o seu grito, longínquo, levando o nome de Bea. A sala iluminou-se com o resplendor do disparo. A bala atravessou a mão direita de Carax. Um instante mais tarde, o homem sem rosto caía sobre Fumero. Inclinei-me para ver Bea correr até junto de mim, incólume. Procurei Carax com um olhar que se me apagava, mas não o encontrei. Outra figura tinha ocupado o seu lugar. Era Laín Coubert, tal como tinha aprendido a temê-lo lendo as páginas de um livro tantos anos atrás. Desta vez, as garras de Coubert enterraram-se nos olhos de Fumero e arrastaram-no como ganchos. Consegui ver as pernas do inspector a arrastarem-se pela porta da biblioteca, o seu corpo a debater-se aos sacões enquanto Coubert o puxava sem piedade até ao portão, os seus joelhos a baterem nos degraus de mármore e a neve a cuspir-lhe no rosto, o homem sem rosto a aferrá-lo pelo pescoço e, erguendo-o como um fantoche, a lançá-lo contra a fonte gelada, a mão do anjo a atravessar-lhe o peito e a trespassá-lo e a alma maldita a derramar-se em vapor e hálito negro que caía em lágrimas geladas sobre o espelho enquanto as suas pálpebras se agitavam até morrer e os seus olhos pareciam lascar-se com arranhaduras de escarcha.
Abati-me então, incapaz de sustentar o olhar mais um segundo. A escuridão tingia-se de luz branca e o rosto de Bea afastava-se num túnel de névoa. Fechei os olhos e senti a mão de Bea sobre o meu rosto e o sopro da sua voz a suplicar a Deus que não me levasse, a sussurrar-me que me amava e que não me deixaria partir, que não me deixaria partir. Só recordo que me desprendi naquela miragem de luz e frio, que uma estranha paz me envolveu e levou a dor e o fogo lento das minhas entranhas. Vi-me a mim mesmo a caminhar pelas ruas daquela Barcelona enfeitiçada pela mão de Bea, quase velhos. Vi o meu pai e Nuria Monfort a depositarem rosas brancas sobre a minha sepultura. Vi Fermín a chorar nos braços de Bernarda, e o meu velho amigo Tomás, que tinha emudecido para sempre. Vi-os como se vêem os estranhos de um comboio que se afasta demasiado depressa. Foi então, quase sem me aperceber, que recordei o rosto da minha mãe, que tinha perdido tantos anos atrás, como se um recorte perdido tivesse escorregado do meio das páginas de um livro. A sua luz foi tudo quanto me acompanhou no meu descenso.
27 De Novembro de 1955 – Post Mortem
O quarto era branco, forjado de linhos e cortinados tecidos de vapor e de sol reluzente. Da minha janela via-se um mar azul infinito. Certo dia, alguém quereria convencer-me de que não, que da clínica Corachán não se vê o mar, que os seus quartos não são brancos nem etéreos e que o mar daquele mês de Novembro era uma jangada de chumbo fria e hostil, que continuou a nevar todos os dias daquela semana até sepultar o sol e Barcelona inteira sob um metro de neve e de que até Fermín, o eterno optimista, julgava que eu ia morrer outra vez.
Já tinha morrido antes, na ambulância, nos braços de Bea e do tenente Palácios, que estragou o seu fato oficial com o meu sangue. A bala, diziam os médicos, que falavam de mim julgando que eu não os ouvia, tinha desfeito duas costelas, roçado o coração, cortado uma artéria e saído a galope pelo flanco, arrastando tudo o que encontrou no caminho. O meu coração deixou de bater durante sessenta e quatro segundos. Disseram-me que, ao regressar da minha excursão ao infinito, abri os olhos e sorri antes de perder o conhecimento.
Não recuperei os sentidos a não ser oito dias mais tarde. Por essa altura, os jornais já tinham publicado a notícia do falecimento do insigne inspector-chefe da polícia, Francisco Javier Fumero, numa rixa com um bando armado de malfeitores, e as autoridades andavam demasiado ocupadas a encontrar-lhe uma rua ou passagem para rebaptizar em sua memória. O seu corpo foi o único encontrado no velho casarão dos Aldaya. Os corpos de Penélope e do filho nunca apareceram.
Acordei ao alvorecer. Lembro-me da luz, de ouro líquido, a derramar-se pelos lençóis. Tinha deixado de nevar e alguém tinha trocado o mar atrás da minha janela por uma praça branca da qual emergiam uns baloiços e pouco mais. O meu pai, enterrado numa cadeira junto à minha cama, ergueu a vista e observou-me em silêncio. Sorri-lhe e ele desatou a chorar. Fermín, que dormia a sono solto no corredor, e Bea, que lhe sustinha a cabeça no regaço, ouviram as suas lágrimas,
um lamento que se perdia aos gritos, e entraram no quarto. Recordo que Fermín estava branco e magro como uma espinha de peixe. Contaram-me que o sangue que me corria nas minhas veias era dele, que eu tinha perdido o meu todo, e que o meu amigo andava há dias a enfrascar-se em sanduíches de lombo na cafetaria da clínica afim de criar glóbulos vermelhos para o caso de eu precisar de mais. Talvez isso explicasse a razão por que eu me sentia mais sábio e menos Daniel. Recordo que havia um bosque de flores e que naquela tarde, ou talvez dois minutos depois, não sei dizer, desfilaram pelo quarto desde Gustavo Barceló e a sua sobrinha Clara, à Bernarda e ao meu amigo Tomás, que não se atrevia a olhar-me nos olhos e que, quando o abracei, desatou a correr e foi chorar para a rua. Recordo vagamente don Federico, que vinha acompanhado da Merceditas e do catedrático don Anacleto. Sobretudo recordo Bea, que me olhava em silêncio enquanto todos se desfaziam em alegrias e promessas ao céu, e o meu pai, que tinha dormido naquela cadeira durante sete noites, a rezar a um Deus em que não acreditava.
Quando os médicos obrigaram toda a comitiva a evacuar o quarto e abandonar-me a um repouso que eu não queria, o meu pai aproximou-se um momento e disse-me que tinha trazido a minha caneta, a caneta de tinta permanente de Vic-tor Hugo, e um caderno, para o caso de eu querer escrever. Fermín, da porta, anunciava que se informara junto da equipa de médicos da clínica e lhe tinham garantido que eu não ia fazer o serviço militar. Bea beijou-me na testa e levou o meu pai para apanhar ar, porque havia mais de uma semana que não saía daquele quarto. Fiquei a sós, esmagado de cansaço, e rendi-me ao sono, contemplando o estojo da minha caneta em cima da mesa-de-cabeceira.
Acordaram-me uns passos na porta e pareceu-me ver a silhueta do meu pai aos pés da cama, ou talvez fosse o doutor Mendoza que não me tirava os olhos de cima, convencido de que eu era filho de um milagre. O visitante contornou a cama e sentou-se na cadeira do meu pai. Sentia a boca seca e mal conseguia falar. Julián Carax chegou-me um copo de água dos lábios e segurou-me a cabeça enquanto os humedecia. Tinha olhos de despedida, e bastou-me olhá-los para compreender que nunca tinha chegado a averiguar a verdadeira identidade de Penélope. Não recordo bem as suas palavras, nem o som da sua voz. Sei, isso sim, que me pegou na mão e que senti que me pedia que vivesse por ele, e que nunca mais voltaria a vê-lo. Do que não me esqueci foi do que eu lhe disse. Pedi-lhe que levasse aquela caneta, que tinha sido sua desde sempre, e que voltasse a escrever.
Quando acordei, Bea estava a refrescar-me a testa com um pano humedecido em água-de-colónia. Sobressaltado, perguntei-lhe onde estava Carax. Olhou-me, confundida, e disse-me que Carax desaparecera na tempestade oito dias atrás deixando um rasto de sangue na neve e que todos o davam como morto. Eu disse que não, que tinha estado ali mesmo, comigo, havia apenas segundos. Bea sorriu-me, sem dizer nada. A enfermeira que me tomava o pulso abanou lentamente a cabeça e explicou-me que eu estava a dormir havia seis horas, que ela tinha estado sentada à sua secretária frente à porta do meu quarto durante todo esse tempo e que, entretanto, ninguém tinha entrado no meu quarto.
Naquela noite, ao tentar conciliar o sono, voltei a cabeça em cima da almofada e verifiquei que o estojo estava aberto e que a caneta tinha desaparecido.
1956 – As Águas de Março
Bea e eu casámo-nos na igreja de Santa Ana dois meses mais tarde. O senhor Aguilar, que ainda me falava por monossílabos e continuaria a fazê-lo até ao fim dos tempos, tinha-me concedido a mão da filha perante a impossibilidade de obter a minha cabeça numa bandeja. O desaparecimento de Bea tinha-lhe embolado a fúria, e agora parecia viver em estado de perpétuo susto, resignado a que em breve o seu neto me chamasse papá e que a vida, valendo-se de um desavergonhado remendado de um tiro, lhe roubasse a menina que ele, apesar das bifocais, continuava a ver como no dia da primeira comunhão, nem um dia mais velha. Uma semana antes da cerimónia, o pai de Bea apareceu na livraria para me oferecer um alfinete de gravata de ouro que tinha pertencido ao pai dele e para me apertar a mão.
– A Bea é a única coisa boa que fiz na vida – disse. – Cuida-me dela. O meu pai acompanhou-o até à porta e viu-o afastar-se pela rua Santa Ana com aquela melancolia que amolece os homens que envelhecem ao mesmo tempo sem que ninguém lhes tenha pedido licença.
– Ele não é má pessoa, Daniel – disse. – Cada um ama à sua maneira. O doutor Mendoza, que duvidava da minha capacidade para me ter de pé durante mais de meia hora, tinha-me advertido de que a fadiga de um casamento e dos seus preparativos não eram o melhor remédio para curar um homem que tinha estado a ponto de deixar o coração na sala de operações.
– Não se preocupe – tranquilizei-o. – Não me deixam fazer nada.
Não mentia. Fermín Romero de Torres tinha-se erigido em ditador absoluto e factótum da cerimónia, banquete e miscelânea vária. O pároco da igreja, ao saber que a noiva chegava prenhe ao altar, tinha-se recusado rotundamente a celebrar o casamento e ameaçou conjurar os fados da Santa Inquisição para que impedissem o evento. Fermín encolerizou-se e arrancou-o de rastos da igreja, gritando aos quatro ventos que era indigno do hábito, da paróquia,
e jurando-lhe que se lhe ocorresse levantar uma pestana lhe armaria semelhante escândalo no episcopado que no mínimo o desterrariam para o rochedo de Gibraltar para evangelizar as macacas por ser mesquinho e miserável. Vários transeuntes aplaudiram, e o florista da praça ofereceu a Fermín um cravo branco que ele logo passou a ostentar na lapela até as pétalas ficarem da cor do colarinho da camisa. Preparados e sem padre, Fermín dirigiu-se ao colégio de San Gabriel e procedeu ao recrutamento dos serviços do padre Fernando Ramos, que nunca tinha celebrado um casamento na vida e cuja especialidade era o latim, a trigonometria e a ginástica sueca, por esta ordem.
– Eminência, é que o noivo está muito fraco e agora eu não lhe posso dar outro desgosto. Ele vê em si uma reencarnação dos grandes padres da Santa Madre Igreja, lá no alto com São Tomás, Santo Agostinho e Nossa Senhora de Fátima. Ali onde o senhor o vê, o rapaz é como eu, devotíssimo. Um místico. Se agora lhe digo que o senhor me deixa ficar mal, ainda temos que celebrar um funeral em vez de um casamento.
– Se me põe as coisas assim…
Segundo me contaram depois – porque eu não me lembro e quem mais se empenha sempre em lembrar-se dos casamentos são os outros -, antes da cerimónia, a Bernarda e don Gustavo Barceló (seguindo instruções pormenorizadas de Fermín) enfrascaram o pobre sacerdote em moscatel para o descontrair. À hora de oficiar o padre Fernando, armado de um sorriso bem-aventurado e de um tom rosado muito favorecedor, optou, num voo de licença protocolar, por substituir a leitura de não sei que Carta aos Coríntios por um soneto de amor, obra de um tal Pablo Neruda, que alguns dos convidados do senhor Aguilar identificaram como comunista e bolchevique impenitente enquanto outros procuravam no missal aqueles versos de rara beleza pagã, perguntando a si próprios se já se começariam a ver os primeiros efeitos do concílio em preparação.
Na noite anterior ao casamento, Fermín, arquitecto do evento e mestre-de-cerimónias, anunciou-me que me tinha organizado uma despedida de solteiro para a qual só ele e eu tínhamos sido convidados.
– Não sei, Fermín. A mim essas coisas…
– Confie em mim.
Chegada a noite dos acontecimentos segui docilmente Fermín até um tugúrio infecto situado na rua Escudillers onde os fedores a humanidade conviviam com os fritos mais abjectos do litoral mediterrânico. Um plantel de damas com a virtude para alugar e muita quilometragem em cima recebeu-nos com sorrisos que teriam feito as delícias de uma faculdade de ortodontia.
– Vimos à procura da Rociíto – anunciou Fermín a um chulo cujas patilhas tinham uma surpreendente semelhança com o cabo Finisterra.
– Fermín – cochichei, aterrado. – Pelo amor de Deus…
– Tenha fé.
A Rociíto apareceu lesta em toda a sua glória, que calculei confinante com os oitenta quilos sem contar o xaile de poliéster e o vestido de viscose colorido, e fez-me um inventário consciencioso.
– Olá, crido. Eu fazia-te mai velho, vê lá tu.
– Não é este o sujeito – esclareceu Fermín.
Compreendi então a natureza do enredo e os meus receios desvaneceram-se. Fermín nunca se esquecia de uma promessa, especialmente se era ele que a tinha feito. Partimos os três em busca de um táxi que nos conduzisse ao asilo de Santa Lucía. Durante o trajecto, Fermín, que em deferência para com o meu estado de saúde e a minha condição de noivo me tinha cedido o banco da frente, compartilhava o de trás com a Rociíto, sopesando as suas evidências com notável deleite.
– Que boazona que tu estás, Rociíto! Este teu cu serrano é o apocalipse segundo Botticelli.
– Ai, sô Fermín, que dês carranjou namorada esqueceu-se de mim e botou-mó desprezo, sô patife.
– É que tu és muita mulher, Rociíto, eu estou numa de monogamia.
– Qual quê, isso né nada ca Rociíto na cure cumas boas fregas de penicilina.
Chegámos à rua Moncada passava da meia-noite, escoltando o corpo celestial da Rociíto. Introduzimo-la no asilo de Santa Lucía pela porta das traseiras que se utilizava para retirar os defuntos para uma viela que se parecia e cheirava como o esófago dos infernos. Uma vez nas trevas do Tenebrarium, Fermín pôs-se a dar as últimas instruções à Rociíto enquanto eu localizava o velhote a quem tinha prometido um último baile com Eros antes que Tânato lhe saldasse as contas.
– Não te esqueças, Rociíto, de que o velhadas está um bocado taralhoco, de maneira que fala-lhe alto, claro e grosso, com picardia, como tu sabes, mas sem exagerar, que também não é caso para lhe facturar o reino dos céus antes da hora com uma paragem cardíaca.
– Fica sogado, crido, queu cá sou uma profissional.
Encontrei o beneficiário daqueles amores de empréstimo num canto do primeiro andar, um sábio ermitão entrincheirado atrás de paredes de solidão. Ergueu a vista e contemplou-me, desconcertado.
– Estou morto?
– Não. Está vivo. Não se lembra de mim?
– Lembro-me de si como da primeira camisa que vesti, jovem, mas ao vê-lo assim, cadavérico, julguei que era uma visão do além. Não ligue. Aqui uma pessoa perde aquilo a que vocês, os exteriores, chamam o discernimento. Portanto, o senhor não é uma visão?
– Não. A visão tenho-a à espera lá em baixo, se tiver a bondade. Conduzi o velhote até uma cela lúgubre que Fermín e a Rociíto tinham ataviado de festa com umas velas e alguns sopros de perfume. Ao poisar o olhar na abundante beldade da nossa Vénus jerezana, o rosto do velhote iluminou-se de paraísos sonhados.
– Deus os abençoe.
– E o senhor que veja – disse Fermín, indicando à sereia da rua Escudillers que passasse a exercer as suas artes.
Vi-a pegar no velhote com infinita delicadeza e beijar-lhe as lágrimas que lhe caíam pelas faces. Fermín e eu retirámo-nos da cena para lhes conceder a merecida intimidade. No nosso périplo por aquela galeria de desesperos topámos com a irmã Emília, uma das freiras que administravam o asilo. Endereçou-nos um olhar sulfúrico.
– Dizem-me uns internos que os senhores introduziram aqui uma rameira, e que agora eles também querem uma.
– Irmã ilustríssima, por quem nos toma? A nossa presença aqui é estritamente ecuménica. Aqui o infante, que amanhã se faz homem aos olhos da Santa Madre Igreja, e eu vínhamos cá para nos interessarmos pela interna Jacinta Coronado.
A irmã Emília arqueou uma sobrancelha.
– Os senhores são família?
– Espiritualmente.
– A Jacinta faleceu há quinze dias. Veio um cavalheiro visitá-la na noite anterior. É parente dela?
– Refere-se ao padre Fernando?
– Não era um sacerdote. Disse-me que se chamava Julián. Não me lembro do apelido.
Fermín olhou para mim, mudo.
– Julián é um amigo meu – disse eu. A irmã Emília assentiu.
– Esteve várias horas com ela. Havia anos que não a ouvia rir. Quando ele se foi embora, ela disse-me que tinham estado a falar doutros tempos, de quando eram novos. Disse-me que este senhor lhe trazia notícias da sua filha Penélope. Não sabia que a Jacinta tinha tido uma filha. Lembro-me, porque nessa manhã a Jacinta me sorriu e quando lhe perguntei por que estava tão contente disse-me que ia para casa, para o pé da Penélope. Morreu ao alvorecer, enquanto dormia.
A Rociíto concluiu o seu ritual de amor um momento depois, deixando o velhote extenuado e nos braços de Morfeu. Quando saíamos, Fermín pagou-lhe a dobrar, mas ela, que chorava de pena diante do espectáculo daqueles desarranjados da cabeça esquecidos de Deus e do demónio, empenhou-se em doar os seus emolumentos à irmã Emília para que dessem um lanche com churros a todos, porque a ela era uma coisa que lhe tirava sempre as mágoas da vida, essa rainha das putas.
– É queu cá sou uma sintimental. Veja lá, sô Fermín, caquele pobrezinho… só cria queu o abraçasse e lhe fizesse festas. Uma pessoa fica toda rota…
Colocámos a Rociíto num táxi com uma boa gorjeta e metemos pela Rua Princesa, que estava deserta e semeada de mantos de vapor.
– Haveria que ir dormir, por causa de amanhã – disse Fermín.
– Não me parece que consiga.
Começámos a andar rumo à Barceloneta e, quase sem darmos por isso, entrámos pelo quebra-mar dentro até que toda a cidade, reluzente de silêncio, ficou aos nossos pés como a maior miragem do universo a emergir do lago das águas do porto. Sentámo-nos na borda do molhe a contemplar a visão. A uma vintena de metros iniciava-se uma procissão imóvel de automóveis com as janelas veladas de vapor e folhas de jornal.
– Esta cidade é bruxa, sabe, Daniel? Mete-se-nos na pele e rouba-nos a alma sem darmos por isso.
– Fala como a Rociíto, Fermín.
– Não se ria, que são as pessoas como ela que fazem deste mundo cão um sítio que vale a pena visitar.
– As putas?
– Não. Putas todos o somos, mais tarde ou mais cedo. Eu digo as pessoas de bom coração. E não olhe assim para mim. A mim os casamentos põem-se que nem um pudim flan.
Ficámos ali sentados nos braços daquela estranha quietude, a catalogar reflexos sobre a água. Daí a pouco, o alvorecer espargiu o céu de âmbar e Barcelona incendiou-se de luz. Ouviram-se os sinos distantes na basílica de Santa Maria del Mar, que emergia das brumas do outro lado do porto.
– Acha que Carax continua ali, nalgum sítio da cidade?
– Pergunte-me outra coisa.
– Tem as alianças? Fermín sorriu.
– Vamos, ande. Que nos esperam ao Daniel e a mim. Espera-nos a vida.
Vestia de marfim e trazia o mundo no olhar. Mal me lembro das palavras do padre, nem dos rostos perdidos de esperança dos convidados que enchiam a igreja naquela manhã de Março. Permanece apenas em mim o roçagar dos seus lábios e, ao entreabrir os olhos, o juramento secreto que trazia na pele e que recordaria todos os dias da minha vida.
1966 – Dramatis Personae
Julián Carax conclui A Sombra do Vento com uma breve memória para alinhavar os destinos das suas personagens anos mais tarde. Li muitos livros desde aquela longínqua noite de 1945, mas o último romance de Carax continua a ser o meu preferido. Hoje, com três décadas atrás de mim, já não tenho esperanças de mudar de opinião.
Enquanto escrevo estas linhas em cima do balcão da livraria, o meu filho Julián, que faz amanhã dez anos, observa-me sorridente e intrigado com aquela pilha de folhas que cresce e cresce, talvez convencido de que o pai contraiu aquela doença dos livros e das palavras. Julián tem os olhos e a inteligência da mãe, e agrada-me acreditar que talvez possua a minha ingenuidade. O meu pai, que tem dificuldade em ler as lombadas dos livros embora não o admita, está lá em cima, em casa. Pergunto muitas vezes a mim mesmo se ele será um homem feliz, em paz, se a nossa companhia o ajuda ou se vive dentro das suas recordações e daquela tristeza que sempre o perseguiu. Agora quem toma conta da livraria somos a Bea e eu. Eu trato das contas e dos números, Bea faz as compras e atende os clientes, que a preferem a mim. Não os culpo.
O tempo fê-la forte e sábia. Quase nunca fala do passado, embora eu a surpreenda amiúde varada num dos seus silêncios, a sós consigo mesma. Julián adora a mãe. Observo-os juntos e vê-se que os une um laço invisível que eu mal consigo começar a compreender. Basta-me sentir-me parte da sua ilha e saber-me afortunado. A livraria dá para viver sem luxos, mas sou incapaz de me imaginar a fazer outra coisa. As vendas reduzem-se de ano para ano. Eu sou optimista e digo que o que sobe desce, e o que desce, um dia há-de subir. Bea diz que a arte de ler está a morrer muito lentamente, que é um ritual íntimo, que um livro é um espelho e que só podemos encontrar nele o que já temos dentro, que ao ler aplicamos a mente e a alma, e que estes são bens cada dia mais escassos. Todos os meses recebemos ofertas para nos comprarem a livraria
e transformá-la numa loja de televisores ou de alpergatas. Não nos tiram daqui a não ser com os pés para a frente.
Fermín e a Bernarda deram o nó em 1958 e já vão em quatro crianças, todas elas do sexo masculino e com o nariz e as orelhas do pai. Fermín e eu vemo-nos menos do que antes, embora às vezes ainda repitamos aquele passeio pelo quebra-mar ao alvorecer e componhamos o mundo à martelada. Fermín deixou o emprego na livraria há anos e recebeu o testemunho, por morte de Isaac Monfort, à frente do Cemitério dos Livros Esquecidos. Isaac está enterrado ao pé de Nuria em Montjuíc. Visito-os com frequência. Falamos. Há sempre flores sobre a sepultura de Nuria.
O meu velho amigo Tomás Aguilar foi para a Alemanha, onde trabalha como engenheiro numa empresa de maquinaria industrial a inventar prodígios que nunca cheguei a compreender. Às vezes escreve cartas, sempre em nome da sua irmã Bea. Casou-se há um par de anos e tem uma filha que nunca vimos. Manda sempre lembranças para mim, mas sei que o perdi sem remédio há anos. Gosto de pensar que a vida nos arrebata os amigos de infância porque sim, mas nem sempre acredito nisso.
O bairro continua como sempre, mas há dias em que me parece que a luz se atreve cada vez mais, que volta a Barcelona, como se entre todos a tivéssemos expulsado mas ela no fim nos tivesse perdoado. Don Anacleto deixou a cátedra do instituto e agora dedica-se em exclusividade à poesia erótica e às suas glosas de contracapa, mais monumentais que nunca. Don Federico Flaviá e a Merceditas foram viver juntos quando a mãe do relojoeiro faleceu. Fazem um par flamante, embora não faltem os invejosos que assegurem que a cabra puxa sempre para o monte e que, de vez em quando, don Federico faz uma ou outra escapadela para a farra ataviado de fúfia.
Don Gustavo Barceló fechou a livraria e trespassou-nos o seu fundo. Disse estar farto do grémio até à ponta dos cabelos e desejoso de empreender novos desafios. O primeiro e último deles foi a criação de uma editora dedicada à reedição das obras de Julián Carax. O primeiro volume, contendo os seus três primeiros romances (recuperados de um conjunto de provas de imprensa perdido num armazém de mobílias da família Cabestany), vendeu trezentos e quarenta e dois exemplares, muitas dezenas de milhares abaixo do êxito do ano, uma hagiografia ilustrada de El Cordobés. Don Gustavo dedica-se agora a viajar pela Europa em companhia de damas distintas e a enviar postais de catedrais.
A sua sobrinha Clara casou-se com o banqueiro milionário, mas a sua união durou apenas um ano. A lista dos seus amantes continua a ser prolixa, embora encolha de ano para ano, como a sua beleza. Agora vive sozinha no andar da praça Real, do qual cada dia sai menos. Houve tempos em que a visitava, mais porque Bea me recordava a sua solidão e a sua pouca sorte do que por meu próprio desejo. Com os anos vi brotar nela uma amargura que quer vestir de ironia e desprendimento.
Às vezes julgo que continua à espera que aquele Daniel enfeitiçado de quinze anos apareça para a adorar na sombra. A presença de Bea, ou de qualquer outra mulher, envenena-a. Da última vez que a vi procurava as rugas do rosto com as mãos. Contam-me que às vezes ainda se encontra com o seu antigo professor de música, Adrián Neri, cuja sinfonia continua inacabada e que, segundo parece, fez carreira como gigolô entre as damas do círculo do Liceo, onde as suas acrobacias de alcova lhe mereceram o apodo de A Flauta Mágica.
Os anos não foram generosos para com a memória do inspector Fumero. Nem sequer os que o odiavam e temiam parecem recordá-lo já. Há anos topei no Paseo de Gracia com o tenente Palácios, que abandonou a corporação e se dedica agora a dar aulas de educação física num colégio da Bonanova. Contou-me que ainda há uma placa comemorativa em honra de Fumero nas caves da esquadra central da Via Layetana, mas a nova máquina distribuidora de refrescos a moedas tapa-a completamente.
Quanto ao casarão dos Aldaya, continua lá, contra todos os prognósticos. Finalmente, a imobiliária do senhor Aguilar conseguiu vendê-lo. Foi completamente restaurado e as estátuas dos anjos reduzidas a gravilha para cobrir a pista do estacionamento que ocupa aquilo que foi o jardim dos Aldaya. Hoje em dia é uma agência de publicidade, dedicada à criação e promoção daquela estranha poesia das peúgas de malha, pudins flã em pó e carros desportivos para executivos de altos voos. Tenho de confessar que um dia, alegando razões inverosímeis, fui lá e pedi para visitar a casa. A velha biblioteca onde estive a ponto de perder a vida é agora uma sala de reuniões decorada com cartazes de anúncios de desodorizantes e detergentes com poderes milagrosos. O compartimento onde Bea e eu concebemos Julián é agora a casa de banho do director-geral.
Naquele dia, ao regressar a Barcelona depois de visitar o antigo palacete dos Aldaya, deparei com um embrulho no correio que trazia carimbo de Paris. Continha um livro intitulado O Anjo de Brumas, romance de um tal Boris Laurent. Passei as folhas à pressa, sentindo aquele perfume mágico a promessa dos livros novos, e detive a vista no início de uma frase ao acaso. Soube de imediato quem o tinha escrito, e não me surpreendeu regressar à primeira página e encontrar, no traço azul daquela caneta que tanto tinha adorado em criança, a seguinte dedicatória:
Para o meu amigo Daniel, que me devolveu a voz e a caneta. E para Beatriz, que nos devolveu a ambos a vida.
Um homem jovem, coroado já de alguns cabelos brancos, caminha pelas ruas de uma Barcelona apanhada sob céus de cinza e um sol de vapor que se derrama sobre a Rambla de Santa Mónica como uma grinalda de cobre líquido.
Leva pela mão um rapaz de uns dez anos, olhar embriagado de mistério perante a promessa que o pai lhe fez ao alvorecer, a promessa do Cemitério dos Livros Esquecidos.
– Julián, não podes contar a ninguém aquilo que vais ver hoje. A ninguém.
– Nem sequer à mamã? – inquire o rapaz a meia-voz.
O pai suspira, amparado naquele sorriso triste que o persegue pela vida.
– Claro que sim – responde. – Para ela não temos segredos. A ela podes contar tudo.
Daí a pouco, figuras de vapor, pai e filho confundem-se entre a multidão das Ramblas, os seus passos para sempre perdidos na sombra do vento.
Esse livro tem muitos erros de tradução, mas isso não diminui seu poder de fascinação.